São Vicente de Paulo: O Gênio da Caridade e Pai dos Pobres
- escritorhoa
- 27 de set.
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INTRODUÇÃO
São Vicente de Paulo (1581–1660) é unanimemente reconhecido na Igreja como mestre e organizador da caridade. Mais que filantropia, sua obra brota da contemplação de Cristo que se identifica com os pobres — “o que fizestes a um destes meus pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40) — e se traduz em método, escola e instituições a serviço dos mais necessitados. Não por acaso, foi reconhecido pela Sé Apostólica como patrono das obras de caridade, sinal de que sua intuição espiritual tornou-se caminho seguro para a vida cristã.
O itinerário de Vicente tem dois marcos fundacionais, ambos em 1617: Folleville, onde a urgência da evangelização dos simples despertou nele a paixão pela missão; e Châtillon-les-Dombes, onde a descoberta de uma família em extrema necessidade o moveu a organizar a ajuda com inteligência e perseverança. A partir desses “dois polos” — anúncio e serviço — amadureceu a convicção que moldará toda a sua herança: a caridade deve ser afetiva e efetiva, unindo coração e mãos, oração e obra, piedade e gestão.
Desse fogo interior nasceram iniciativas duradouras: a Congregação da Missão (Lazaristas), as Filhas da Caridade e as confrarias de leigos, lançando um modo tipicamente eclesial de cuidar dos pobres com dignidade, prudência e constância. No centro, uma pedagogia de santidade simples e firme, sintetizada nas virtudes que propunha a todos: simplicidade, humildade, mansidão, mortificação e zelo. Como lembrará a tradição vicentina, amar a Deus envolve “o suor do rosto” e a busca do bem real do próximo (cf. 1Jo 3,18).
Este artigo apresenta, de forma acessível e fiel ao Magistério, a vida, a espiritualidade e o legado de São Vicente de Paulo, destacando como seu carisma continua atual para famílias, paróquias e obras sociais. Ao final, proporemos passos concretos para que cada leitor traduza em gestos cotidianos a palavra do Evangelho — permanecendo com Cristo e servindo-O nos pobres (cf. Mt 25,40).

2.0 VIDA E LEGADO VICENTINO
2.1 Biografia e contexto histórico: a jornada de uma alma
A França do século XVII foi um cenário de profundos contrastes. De um lado, o “Grande Século” do absolutismo e do florescimento cultural; de outro, um território marcado por guerras civis e religiosas, fome e uma miséria que atingia brutalmente a população camponesa. Ao mesmo tempo, a Igreja, impulsionada pela Reforma Católica após o Concílio de Trento, vivia um intenso movimento de renovação espiritual e pastoral. Foi nesse cadinho de provações e esperanças que a vocação de Vicente de Paulo foi forjada, purificada e orientada para uma das missões mais fecundas da história do cristianismo.
Primeiros anos e ambições iniciais. Nascido em 24 de abril de 1581, em Pouy (Gasconha), de família camponesa, Vicente revelou desde cedo notável inteligência. Seu pai investiu na educação do filho, vislumbrando para ele um caminho que o aliviasse da dureza do campo. Movido inicialmente por aspirações legítimas, porém terrenas — obter um benefício eclesiástico para ajudar a família —, Vicente recebeu a ordenação sacerdotal precocemente, em 1600, com apenas 19 anos (com a devida dispensa). Seus primeiros anos de ministério refletiram a busca por estabilidade social e segurança material, realidade que ele mesmo reconheceria depois como limitada diante do chamado de Deus (cf. Tg 2,14–17).
Provação e purificação: o cativeiro em Túnis (1605–1607). Em 1605, durante viagem pelo Mediterrâneo, a embarcação em que viajava foi capturada por piratas; Vicente foi levado como escravo para Túnis, onde permaneceu cerca de dois anos (1605–1607), servindo a diferentes senhores até lograr a fuga, ligada à conversão do último amo. O episódio é referido em cartas atribuídas ao próprio santo; contudo, seu longo silêncio público posterior suscitou debate historiográfico sobre pormenores do relato. Do ponto de vista espiritual e pastoral, porém, a experiência — tal como ele a interpretou — agiu como cadinho de purificação: na humilhação e no sofrimento aprendeu, “na própria pele”, o significado do abandono e da miséria. Essa memória formaria, para sempre, seu zelo obediente à Providência e a decisão de amar “não a palavra nem a língua, mas com obras e em verdade” (1Jo 3,18; cf. CIC 2447).
O despertar da missão (1617). O ano de 1617 marca a virada definitiva de sua vida, iluminada por dois acontecimentos que se tornaram paradigmáticos do carisma vicentino:
Folleville (janeiro de 1617). Enquanto servia como preceptor na casa dos Gondi, Vicente foi chamado a confessar um camponês moribundo. Surpreendeu-se ao descobrir, naquele “bom cristão”, pecados graves jamais confessados por falta de instrução. Dias depois, pregou sobre a confissão geral, e a resposta foi tão abundante que percebeu a ignorância religiosa e o abandono espiritual do povo do campo. Ali intuiu o chamado a missões populares: evangelizar os pobres com linguagem simples, catequese sólida e acesso aos sacramentos (cf. Lc 4,18–19).
Châtillon-les-Dombes (agosto de 1617). Atuando temporariamente como pároco, Vicente soube, pouco antes da Missa, de uma família gravemente enferma e em extrema penúria. Exortou a comunidade do púlpito; a resposta foi generosa, porém desordenada. Daí brotou a inspiração de organizar a caridade: reuniu senhoras da paróquia e estruturou um serviço permanente de ajuda, com regras simples e responsabilidades definidas. Nascia a primeira Confraria da Caridade. Não bastava “boa vontade”: era preciso uma caridade afetiva e efetiva, com método e constância (cf. Mt 25,40; CIC 1888–1889 sobre a necessidade de “estruturas” que promovam o bem).
No coração das misérias humanas. Após 1617, o ministério de Vicente mergulhou decididamente nas misérias de seu tempo. Como Capelão Real das Galés, humanizou as condições dos condenados aos remos, levando-lhes assistência material e espiritual. Durante a Guerra dos Trinta Anos, organizou amplas campanhas de socorro às vítimas da fome e da devastação, sobretudo na Lorena. Sua reputação de santidade levou-o ao Conselho de Consciência da rainha-regente Ana d’Áustria, onde promoveu a nomeação de bispos reformadores e pastores diligentes. A experiência pastoral consolidou uma convicção: a compaixão, para ser cristã, deve encarnar-se em formas estáveis de serviço que perdurem e transformem a sociedade (cf. CIC 1434–1438; 2030–2033).
Reconhecimento e legado. A unidade entre contemplação e ação, tão característica de Vicente, frutificou em obras e instituições que marcaram a vida da Igreja. Em reconhecimento à sua influência e como estímulo perene às obras de misericórdia, o Papa Leão XIII o proclamou Patrono de todas as obras de caridade, em 1885, gesto que confirmou, em nível eclesial, a exemplaridade de sua intuição espiritual e organizadora (cf. Leão XIII, breve apostólico, 12.05.1885).
2.2 As grandes fundações: a caridade organizada em ação
O gênio de São Vicente de Paulo não reside apenas na compaixão ardente, mas na capacidade revolucionária de transformar a caridade em ação eficaz e estruturada. Ele foi arquiteto de um novo paradigma eclesial, que ultrapassou a esmola ocasional e promoveu uma abordagem sistemática dos sofrimentos sociais. Percebeu que a boa vontade isolada não basta para enfrentar a miséria estrutural; por isso, suas fundações não foram simples iniciativas de assistência, mas inovações institucionais que perduram como modelos de apostolado.
2.2.1 Congregação da Missão (Lazaristas)
Fundação oficial: 1625. A Congregação da Missão — cujos membros são conhecidos como Lazaristas ou Padres Vicentinos — nasce da experiência de Folleville e espelha o duplo ardor do fundador:
Evangelizar os pobres do campo. Por meio das missões populares, os padres percorriam aldeias rurais pregando com simplicidade, ensinando o catecismo e administrando os sacramentos a populações esquecidas (cf. Mt 9,36–38; CIC 1115; 1422–1424). A opção pelos pobres não era slogan, mas consequência da fé no Cristo que veio “anunciar a Boa-Nova aos pobres” (Lc 4,18).
Formar o clero. Convencido de que a renovação do povo depende da renovação de seus pastores, Vicente instituiu os “Exercícios dos Ordinandos” (retiros de preparação para a Ordenação) e assumiu a direção de seminários. Assim, contribuiu decisivamente para a reforma do clero francês, em consonância com o impulso tridentino (cf. CIC 1547; 1564; 1585).
A Congregação da Missão unia doutrina sólida, piedade e organização: catequese clara, confissão bem preparada, pregação acessível, caridade concreta. O método refletia a convicção vicentina de que a graça se comunica por meios ordenados, de modo a alcançar o pobre “naquilo de que realmente precisa”.
2.2.2 Companhia das Filhas da Caridade
Fundação: 1633, com Santa Luísa de Marillac. Trata-se de uma verdadeira novidade na vida consagrada feminina. Em contexto no qual a maioria das mulheres consagradas vivia em clausura, Vicente e Luísa discerniram um caminho ativo, inserido no coração do mundo.
Um novo paradigma. As Filhas da Caridade foram pioneiras no serviço fora da clausura. A máxima vicentina — “As ruas são o nosso claustro” — resume a ousadia carismática: estar onde o pobre está, com disciplina, oração e competência (cf. Mt 25,35–36; CIC 2447).
Atuação de frente. Nos primeiros tempos, sem hábito uniforme, vestiam-se com modéstia semelhante à das camponesas, sublinhando a inserção no cotidiano dos pobres. Tornaram-se linha de frente da caridade vicentina: assistência aos doentes em hospitais e domicílios, cuidado dos enfants trouvés (crianças abandonadas) e socorro às vítimas de guerras e fomes. Em tudo, uniam oração e gestão prudente, evitando improvisos e desperdícios (cf. CIC 1883; 1888–1889).
2.2.3 Confrarias da Caridade (AIC)
Origem: 1617, em Châtillon-les-Dombes. Primeira expressão organizada do carisma de Vicente, revelam sua genialidade em mobilizar leigos para o serviço direto aos necessitados.
Apostolado dos leigos. Vicente conclamou especialmente as Damas da Caridade a organizar visitas e cuidados aos pobres e enfermos de suas próprias paróquias. Essa corresponsabilidade está em harmonia com a dignidade batismal e a missão secular própria dos leigos (cf. CIC 897–900; 2442).
Caridade eficaz. Para garantir constância e eficácia, estabeleceu regras simples: horários, turnos de visita, prestação de contas, formação espiritual e coordenação com o pároco. Assim, superava-se a caridade meramente emocional e desorganizada, dando origem à atual Associação Internacional de Caridades (AIC), vasta rede de voluntariado leigo.
Síntese teológico-pastoral. As três fundações — Congregação da Missão, Filhas da Caridade e Confrarias — compõem a estrutura visível de um corpo cuja alma é a espiritualidade vicentina. Trata-se de caridade que é ao mesmo tempo afetiva e efetiva, contemplativa e prática, pessoal e institucional. É a resposta concreta ao Cristo que se identifica com os pobres (Mt 25,40), à fé que opera pela caridade (Gl 5,6) e ao chamado da Igreja a formar consciências e ordenar a vida social segundo o bem comum (CIC 1888–1889; 1928–1933). Em 1885, o gesto de Leão XIII — ao reconhecer Vicente como Patrono das obras de caridade — apenas confirmou, com autoridade magisterial, aquilo que a história já atestava: o carisma vicentino é uma via segura para a santidade e para a transformação cristã da sociedade.
2.3 O coração do carisma: a espiritualidade vicentina
A ação incansável de São Vicente de Paulo não era mero ativismo humanitário; brotava de uma união viva com Deus, nutrida pela oração e comprovada na caridade. Ele não separava oração de trabalho, nem amor a Deus de amor ao próximo; ao contrário, compreendia que um alimenta e autêntica o outro (cf. 1Jo 3,18; Tg 2,14–17; CIC 1822–1829; 2447). A espiritualidade vicentina é, portanto, a chave hermenêutica de sua obra e a fonte perene de sua fecundidade pastoral (cf. CIC 2559; 2565; 2725; 2745).
2.3.1 Ver Cristo nos pobres
O princípio teológico que sustenta todo o ministério vicentino é a identificação de Cristo com os pobres. O serviço aos marginalizados não é, para ele, um dever genérico de filantropia, mas um encontro com o próprio Senhor: “todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Daí decorre a convicção — tradicionalmente atribuída ao Santo — de que “os pobres são nossos mestres”, pois, ao servi-los, recebemos lições de humildade e fé. Essa visão está em harmonia com o Magistério: a Eucaristia compromete-nos com os pobres (CIC 1397) e a misericórdia se exprime em obras espirituais e corporais (CIC 2447); além disso, a Igreja reconhece uma preferência pelos pobres, nos quais Cristo se fez presente (CIC 2448).
Assim, cuidar do enfermo, alimentar o faminto, instruir o ignorante e consolar o aflito é tocar, com reverência, as chagas do Cristo sofredor e glorioso (cf. Mt 25,35–36; Gl 6,2). Para Vicente, a caridade verdadeira envolve proximidade, competência e organização, a fim de alcançar o bem real do próximo — sempre com ternura e firmeza evangélica (cf. CIC 1888–1889).
2.3.2 As cinco virtudes fundamentais
Ao propor um caminho de santidade para missionários, Filhas da Caridade e leigos, São Vicente destacou cinco virtudes que expressam o “espírito vicentino” e moldam o discípulo para o serviço:
Simplicidade. Transparência de coração, intenção reta, linguagem clara. É o “vosso sim, sim; vosso não, não” (Mt 5,37), associado à sinceridade do apóstolo (cf. 2Cor 1,12). Na prática, pede pregação direta, catequese acessível e honesta administração dos bens da caridade.
Humildade. Reconhecer que tudo é graça e abraçar o último lugar (cf. Lc 14,11; 1Pd 5,5–6). Essa virtude sustentou a presença de Vicente entre prisioneiros das galés, pobres e doentes, servindo sem buscar prestígio.
Mansidão. Brandura e paciência no trato, aprendidas do próprio Cristo: “aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). É virtude indispensável para mediar conflitos, educar para a fé e perseverar no serviço.
Mortificação. Domínio de si, renúncia às próprias vontades para conformar-se a Cristo (cf. Lc 9,23; 1Cor 9,27). Ordena afetos e hábitos para que a caridade seja livre, pronta e constante (cf. CIC 1808).
Zelo. Ardor apostólico pela salvação das almas: “ai de mim se não evangelizar” (1Cor 9,16); “sede fervorosos de espírito, servi ao Senhor” (Rm 12,11). No carisma vicentino, o zelo move as missões populares e qualquer obra que conduza o pobre a Cristo.
2.3.3 Contemplação e ação: caridade “afetiva e efetiva”
São Vicente supera a falsa dicotomia entre “vida contemplativa” e “vida ativa”. Ensina que a caridade, para ser autêntica, deve ser ao mesmo tempo afetiva (nascida de um amor interior, cultivado na oração e nos sacramentos) e efetiva (traduzida em obras concretas, estáveis e bem ordenadas). Trata-se de um contínuo movimento do altar para a rua e da rua para o altar: a adoração eucarística e a participação na Missa inflamam o serviço; o serviço, por sua vez, conduz de volta à ação de graças (cf. At 2,42–47; CIC 1396–1397).
Esta síntese é expressa em exortações vicentinas frequentemente citadas, como “amar a Deus com a força dos braços e o suor do rosto” — isto é, amar não apenas “de palavra e de boca, mas com obras e em verdade” (1Jo 3,18). Não se trata de ativismo, mas de caridade ordenada, que nasce da graça, obedece à Igreja e busca, acima de tudo, o bem integral da pessoa.
2.4 Um legado que atravessa os séculos: a Família Vicentina
O legado de São Vicente de Paulo assemelha-se a uma árvore robusta, cujas raízes no Evangelho deram origem a ramos que se estenderam pelo mundo. O conjunto de instituições, associações e obras inspiradas em seu carisma é conhecido como Família Vicentina — prova viva de que a semente lançada no século XVII continua a frutificar, ajustando-se a novos tempos e desafios, sem perder a identidade. As Confrarias da Caridade (1617) são o tronco originário que, ao longo dos séculos, gerou novas expressões eclesiais.
2.4.1 Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP)
Fundada em 1833, em Paris, por jovens universitários liderados pelo Bem-aventurado Frederico Ozanam, a SSVP brota do desejo de responder à indiferença e à incredulidade com o testemunho de uma fé que age pela caridade (Gl 5,6). Embora São Vicente não a tenha fundado diretamente — falecera 173 anos antes —, é seu patrono celestial e inspiração constante: visitar e socorrer os pobres em suas necessidades materiais e espirituais, no espírito da amizade e da justiça (cf. Mt 25,35–40; CIC 2447–2449; 2442; 899–900). A obra de Ozanam e companheiros mostra como o carisma vicentino transcende épocas, dando novas respostas a velhas chagas.
2.4.2 Presença global e no Brasil
A árvore vicentina lançou raízes profundas também no Brasil, onde encontrou campo fecundo. As principais instituições fundadas ou inspiradas por São Vicente estabeleceram presença significativa, com impacto social e eclesial. (Os dados a seguir devem ser documentados por fontes institucionais atualizadas — AIC, Companhia das Filhas da Caridade, Congregação da Missão e SSVP — a fim de assegurar precisão e transparência.)
Instituição | Chegada ao Brasil | Impacto atual (resumo) |
Congregação da Missão (Lazaristas) | 1820 | Organizada em 3 Províncias, com cerca de 200 membros atuando na formação do clero, paróquias e missões. |
Companhia das Filhas da Caridade | 1849 | Com 6 Províncias, cerca de 972 irmãs em hospitais, escolas, obras sociais e projetos com populações vulneráveis. |
Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP) | 1872 | Maior ramo nacional da SSVP, com aprox. 122.000 membros em mais de 15.900 Conferências. |
2.4.3 Impacto contínuo e inventividade da caridade
O alcance global da Família Vicentina é vasto. Estima-se que, em escala mundial, suas diversas organizações assistem milhões de pessoas por dia por meio de hospitais, escolas, abrigos, serviços de proteção social e projetos de promoção humana (conforme estimativas institucionais). Esta vitalidade confirma a genialidade organizadora de Vicente: criar estruturas flexíveis e duráveis que, iluminadas pelo Evangelho, respondam aos clamores de cada época (cf. CIC 1888–1889; 1928–1933).
O espírito que anima essa família e suas obras resume-se no adágio atribuído ao Santo: “A caridade é infinitamente inventiva.” Não é um impulso cego, mas sabedoria pastoral e social, enraizada em Cristo e na vida da Igreja. Nesse sentido, o gesto de Leão XIII, ao proclamar São Vicente de Paulo Patrono de todas as obras de caridade (breve apostólico, 12.05.1885), oferece uma chave magisterial de leitura do carisma: trata-se de uma via segura para a santidade e para a transformação cristã da sociedade (cf. Mt 25,40; CIC 2447–2449).
CONCLUSÃO
São Vicente de Paulo permanece na história da Igreja como o “gênio da caridade”, um modelo perene de fé encarnada que soube traduzir o amor a Deus em serviço organizado, inteligente e profundamente humano. Sua vida é testemunho de verdadeira conversão: a passagem de ambições ligadas a uma carreira eclesiástica para a entrega total aos mais pobres, nos quais aprendeu a ver e a servir o próprio Cristo (cf. Mt 25,40). Sua contribuição decisiva não foi apenas aliviar o sofrimento, mas criar um modelo de caridade estruturada, fundando instituições inovadoras e inspirando uma vasta família espiritual que, quatro séculos depois, continua sua missão em todos os continentes.
A atualidade do testemunho de São Vicente é impressionante. Num mundo marcado pela “globalização da indiferença” (Francisco, Evangelii Gaudium, 52), o seu método aparece como antídoto eficaz: substituir a apatia por atenção organizada, pessoal e sistemática ao sofrimento concreto de cada pessoa — como ele ensinou com as regras das Confrarias da Caridade e a prática da visita domiciliar (cf. CIC 2447–2449). De algum modo, Vicente prefigurou linhas que a Doutrina Social da Igreja articularia posteriormente em Rerum Novarum (Leão XIII, 1891), ao insistir que a caridade requer formas estáveis e prudentes para promover o bem comum (cf. CIC 1888–1889). Esse mesmo Leão XIII reconheceu e confirmou a exemplaridade do santo, proclamando-o Patrono de todas as obras de caridade por breve apostólico de 12 de maio de 1885.
A obra de São Vicente de Paulo foi a encarnação da caridade — forma de todas as virtudes (CIC 1827; cf. S. Tomás de Aquino, S. Th. II–II, q. 23, a. 8) —, verdadeiro remédio contra o orgulho e o egoísmo de cada época. Em sintonia com o Magistério, Vicente lembrava que a restauração dos costumes cristãos e a formação das consciências são prioritárias para o florescimento da vida social (cf. CIC 2030–2033; 1888–1889); sem isso, mesmo os meios humanos mais elaborados pouco frutificam. Sua síntese de contemplação e ação, fé e obras, ao buscar antes de tudo o aperfeiçoamento moral e religioso, preserva-nos tanto de um cristianismo desencarnado quanto de um ativismo sem alma e recorda a palavra do Senhor: “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8,36; cf. Mt 16,26).
Que o exemplo de São Vicente de Paulo nos inspire. Aprendamos com ele a encontrar Cristo no rosto sofredor de nossos irmãos e irmãs; e que, movidos por essa descoberta, tenhamos a coragem de traduzir nosso amor a Deus não apenas em sentimentos, mas em serviço concreto, criativo e eficaz (cf. CIC 2447–2449), “com a força dos braços e o suor do rosto” — conforme a frase tradicionalmente atribuída ao santo (cf. 1Jo 3,18).
ORAÇÃO DE ENCERRAMENTO
Senhor Jesus, fonte da caridade, nós Te louvamos porque te fazes encontrar no rosto dos pobres. Concede-nos um coração simples e humilde para reconhecer-Te e servir-Te com alegria. Purifica nossas intenções, cura nossa indiferença e inflama nosso zelo, para que a fé opere em nós por amor fiel e perseverante.
Espírito Santo, modela-nos nas virtudes de São Vicente: simplicidade, humildade, mansidão, mortificação e zelo apostólico. Ensina-nos a unir oração e serviço, altar e rua. Dá-nos mãos generosas, olhos compassivos, passos diligentes, palavras que consolam e corrigem. Torna nossa caridade afetiva e efetiva, prudente e criativa, para tua glória e salvação.
São Vicente de Paulo, intercede por nós. Que a Igreja, tua mestra, seja sempre casa para os pobres e escola de santidade. Maria, Mãe da Caridade, acompanha-nos no caminho. Concede-nos perseverança nas obras, retidão nas decisões e alegria no sacrifício, em comunhão com os pobres. Por Cristo, nosso Senhor. Amém.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Sagrada Escritura
Bíblia Sagrada (Nova Vulgata). Nova Vulgata: Bibliorum Sacrorum Editio. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2004 (editio typica altera 1986).
Novo Testamento Grego (SBLGNT). Holmes, Michael W. (ed.). The Greek New Testament: SBL Edition. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2010.
Catecismos e Doutrina
Catecismo da Igreja Católica. Edição típica latina. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1997 (trad. port. conforme edição nacional).
Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2005.
Magistério (seleção citada no texto)
Leão XIII. Rerum Novarum (15 mai. 1891).
Leão XIII. Neminem Fugit (Breve que proclama São Vicente de Paulo Padroeiro de todas as obras de caridade da Igreja), 12 mai. 1885.
João Paulo II. “Mensagem ao Superior Geral da Congregação da Missão por ocasião do Jubileu de São Vicente de Paulo”, 2 set. 1981.
Francisco. Evangelii Gaudium (24 nov. 2013), especialmente §52.
Fontes vicentinas e estudos históricos
Abelly, Louis. Vida do Venerável Servo de Deus Vicente de Paulo. Paris, 1664.
Coste, Pierre (ed.). Correspondance, Entretiens, Documents de Saint Vincent de Paul, 14 vols. Paris: Gabalda, 1920–1925.
Dégert, Antoine. “St. Vincent de Paul.” The Catholic Encyclopedia, vol. 15. New York: Robert Appleton, 1912.
Mulry, Thomas. “Society of Saint Vincent de Paul.” The Catholic Encyclopedia, vol. 13. New York: Robert Appleton, 1912.
Pujo, Bernard. Vicente de Paulo, o Reformador do Século XVII. São Paulo: Loyola, 1998.
Fontes institucionais e dados contemporâneos
SSVP Global – St. Vincent, a Source of Inspiration (página institucional; estatísticas e missão).
Catholic Culture – Liturgical Calendar: Memorial of St. Vincent de Paul (nota sobre título de padroeiro e memória litúrgica).
FAMVIN News. “How Saint Vincent de Paul Was Canonized” (contexto histórico da canonização).
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