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São Francisco de Sales: A Via da Mansidão Que Santifica o Cotidiano


ARTIGO - SÃO FRANCISCO DE SALESCaminho de Fé

PODCAST - FILOTEIACaminho de Fé

INTRODUÇÃO

A figura de São Francisco de Sales (1567–1622) ergue-se, na paisagem da Igreja, como um farol de mansidão firme: pastor, diretor de almas, comunicador criativo, Doutor do amor. Em tempos de controvérsia e dispersão interior, ele indica um caminho simples e exigente: tudo nasce do amor de Deus e a Ele retorna, pela caridade pronta que chamamos devoção. Este artigo percorre a sua vida e missão, contempla a arquitetura espiritual de suas obras-mestras — Filoteia e Tratado do Amor de Deus —, extrai o núcleo doutrinário em torno da primazia da caridade e da santidade laical e descreve o método pastoral sintetizado no lema “fazer tudo por amor, nada à força”. Em seguida, analisa a recepção e o legado de Sales na Igreja, a intuição fundacional da Visitação, caridade contemplativa para muitos, e traça aplicações pastorais para leigos, clero e comunicadores.

Não se trata de um retrato devocional sem critério, mas de uma leitura teológico-pastoral que busca integrar biografia, doutrina e prática; unir contemplação e ação; oferecer direção segura a quem deseja santificar o cotidiano. Diante das urgências do nosso tempo — fadiga espiritual, polarizações agressivas, pressa improdutiva —, a proposta salesiana desponta como medicina antiga e sempre nova: formar o coração, ordenar os afetos, perseverar nas pequenas fidelidades, comunicar a verdade com caridade. Eis o horizonte que se abrirá ao leitor nas páginas seguintes.

São Francisco de Sales escrevendo com pena diante do Crucifixo, luz dourada ao fundo e auréola discreta, em estilo clássico 16:9.

2. VIDA, DOUTRINA E LEGADO DE SÃO FRANCISCO DE SALES 

2.1 Vida e missão de um pastor da mansidão

Esta seção apresenta, em chave biográfica e pastoral, a figura de São Francisco de Sales, bispo de Genebra e Doutor da Igreja, cuja vida transcorreu entre 1567 e 1622. Seu itinerário manifesta a via da mansidão evangélica como método e conteúdo da evangelização, iluminando a santidade possível em todos os estados de vida. Ao percorrer sua infância, formação, ordenação, missão no Chablais, episcopado em Annecy e a fundação da Ordem da Visitação, veremos emergir uma coerência rara: tudo em Sales nasce do amor de Deus, se expressa em caridade persuasiva e culmina num governo pastoral próximo, firme e doce. Sempre.

Francisco nasceu na Saboia, em berço nobre, recebendo educação esmerada que uniu letras, artes e sólida piedade familiar. Em Paris, aprofundou humanidades e teologia; em Pádua, coroou os estudos jurídicos, alcançando alta competência forense sem perder o gosto da Escritura e dos Padres. Ainda jovem, enfrentou dura crise interior marcada pelo temor da reprovação eterna, sob o debate aceso sobre predestinação. A provação, vencida por abandono confiante na misericórdia, imprimiria na sua personalidade uma marca permanente: Deus quer ser amado, não temido servilmente; a liberdade humana, movida pela graça, responde amorosamente e encontra paz no querer divino. Rumo a Deus, para sempre.

Ordenado sacerdote após prudentes resistências paternas, o jovem presbítero iniciou ministério de púlpito, catequese e direção, revelando eloquência sem dureza e disciplina sem aspereza. Sua caridade pastoral aproximava-se de cada pessoa com atenção personalizada, linguagem clara e confiança nos meios ordinários da graça: Palavra, sacramentos, oração fiel. Pouco depois, foi enviado para a delicada missão no Chablais, região dominada pelo calvinismo e hostil à presença católica. A escolha do método diria tudo sobre seu coração: nada por coação, tudo por amor; paciência, visitas de casa em casa, diálogo perseverante, textos curtos distribuídos discretamente, invocando razões e esperança no Senhor Jesus.

Ali nasceram os célebres panfletos das Controvérsias, folhas simples colocadas em portas e praças, onde Sales expunha com precisão doutrinal, doçura e respeito as verdades católicas contestadas. A escrita era clara, direta, impregnada de caridade; a apologética, bíblica e patrística, evitava o sarcasmo e buscava convencer pelo bem. Com o tempo, muitos habitantes, tocados pela mansidão e pela consistência argumentativa, regressaram à plena comunhão. As conversões foram fruto da ação conjunta da graça, do testemunho coerente e da pastoral paciente. A região, antes fria e refratária, tornou-se terreno de reconciliação, escola viva de evangelização persuasiva, humilde, perseverante e fecunda sempre.

Nomeado bispo de Genebra, residindo em Annecy por circunstâncias históricas, Francisco de Sales assumiu o governo com estilo próximo, visitando paróquias, reformando costumes, promovendo formação sólida do clero e acompanhando pessoalmente uma vasta rede de leigos. O padrão era constante: firmeza doutrinal unida à doçura pastoral. Pregava com imagens acessíveis, iluminando a consciência sem feri-la; confessava com paciência; escrevia cartas de direção espiritual que se multiplicaram às centenas, depois milhares. Nele, autoridade e paternidade compunham harmonia viva. O povo reconhecia um pastor que sabia unir clareza e mansidão, verdade e caridade, disciplina e ternura, governo e amizade em Cristo sempre.

A amizade espiritual com Santa Joana de Chantal conduziu, em 1610, à fundação da Ordem da Visitação de Santa Maria. O carisma nascia de intuição delicada: abrir caminho a mulheres desejosas de consagrar-se a Deus com disciplina prudente, vida fraterna simples e forte centralidade do coração de Jesus. A Visitação privilegiava a vida interior, a caridade concreta e a humildade, oferecendo um refúgio seguro para quem, por idade ou fragilidade, não podia observar regras rigorosas. Sales acompanhava as irmãs com conferências elevadas e práticas, iluminando a união entre contemplação e ação, louvor e serviço, ternura e firme perseverança diária alegre.

A experiência juvenil de provação marcou sua doutrina. No fundo, Sales leu a própria história como escola de liberdade iluminada pela graça. Por isso insistiu que Deus atrai com suavidade, solicita amor, respeita o tempo da alma e pede adesão inteira. Sua linguagem preferia o coração às abstrações áridas, sem perder a precisão teológica. A pastoral confiava no poder ordinário da graça: pequenos passos, atos de virtude, sacramentos, oração fiel e direção. Tudo deveria conduzir ao “êxtase da ação”: amar a Deus nas responsabilidades diárias, ordenando afetos, desejos e trabalhos, até que a vontade se una amorosamente à divina vontade.

Depois de anos de intenso serviço, viagens, pregações e escrituras, Francisco adoeceu e, no fim de 1622, entregou serenamente a alma a Deus. Seu povo chorou um pai; a Igreja reconheceu, ao longo das décadas, a santidade irradiante do bispo de mansidão. Seguiram-se a beatificação e a canonização, e mais tarde o título de Doutor da Igreja, honrando sua doutrina centrada na caridade. Acrescentaram-se patronatos significativos, como o dos comunicadores, em razão do uso criativo e responsável da palavra escrita a serviço da verdade na caridade. Permanece, assim, um mestre seguro para tempos de polarização e discernimento em toda parte.

A síntese de sua vida pode ser apreciada no lema que atravessa seus escritos e decisões: “fazer tudo por amor, nada à força”. Não se trata de suavidade frouxa, mas de firmeza que recusa a violência porque confia no atrativo do bem. Esse método brota de sua teologia do amor, depurada nas provações e comprovada no apostolado. Por isso conquistou corações, reergueu comunidades, serviu com doçura exigente e iluminou consciências sem humilhar. A história do Chablais, a Visitação e o episcopado demonstram a fecundidade da mansidão, quando unida à verdade acreditada, ensinada com paciência e testemunhada nas coisas pequenas diárias.

Concluindo esta seção biográfica, contempla-se um pastor cujo itinerário explica a doutrina que oferecerá ao povo de Deus. Na juventude, aprendeu a confiar; no ministério, escolheu persuadir; no governo, preferiu acompanhar; na fundação, abriu caminhos; na morte, devolveu tudo a Deus. A sua história prepara a leitura das obras mestras, nas quais a santidade laical ganha contornos acessíveis, e a vida devota é definida como caridade pronta e alegre. O que já se viu no Chablais e em Annecy se tornará método claro: oração, sacramentos, virtudes, direção espiritual. Eis a biografia que sustenta o ensinamento salesiano, para todas as almas. 

2.2. As obras-mestras: Filoteia e Tratado do Amor de Deus

As obras-mestras: Filoteia e Tratado do Amor de Deus introduzem, com rara unidade, a espiritualidade que Francisco de Sales amadureceu no ministério. A Filoteia, destinada ao cristão que deseja “viver devotamente” no mundo, oferece itinerário progressivo, equilibrando purificação, oração, sacramentos e exercício das virtudes. O Tratado, dirigido a almas já crescidas, contempla o mistério do amor divino que antecede, acompanha e consuma a resposta humana. Entre ambas, delineia-se um arco: da iniciação prudente à caridade fervorosa até a união da vontade com Deus, no cotidiano. A linguagem é clara, persuasiva e profundamente eclesial, sempre concreta, sempre consoladora e esperançosa.

A Filoteia nasce de cartas e conversas de direção, reorganizadas para guiar o leigo na vida comum. Sua arquitetura em cinco partes conduz do desejo inicial à perseverança madura: abandonar o pecado, consolidar a oração mental e vocal, frequentar os sacramentos, exercitar virtudes próprias do estado de vida, enfrentar tentações e fazer uma renovação anual. Sales recusa uniformidades; recomenda medidas proporcionadas à saúde, ao trabalho, à família. O objetivo é plasmar um coração dócil, capaz de amar a Deus em tudo, convertendo deveres em ofertas. A devoção, aqui, não foge do mundo: santifica o mundo, pacientemente, jubilosamente, com mansidão perseverante.

Nessa obra, a devoção é definida como caridade pronta, diligente e alegre, que torna leves as obrigações difíceis porque ama o Bem. Não se opõe à caridade; é a própria caridade em grau fervoroso. Daí decorrem sinais concretos: mansidão no trato, paciência nas demoras, constância nas pequenas fidelidades. A pedagogia espiritual evita escrúpulos e desencorajamentos, preferindo passos pequenos porém seguros. O diretor propõe exames de consciência simples, horários realistas, penitências prudentes e um olhar benevolente sobre o próximo. Assim, a Filoteia cura dois extremos: o rigor que quebra e a frouxidão que adormece, conduzindo ao meio virtuoso, prudente e fecundo.

O Tratado do Amor de Deus recolhe a experiência pastoral e dá-lhe fôlego contemplativo. Em doze livros, Sales medita a iniciativa gratuita de Deus, o movimento do coração humano, as formas do amor — complacência, benevolência, reconhecimento — e as vias de união. A liberdade, sanada e elevada, coopera com a graça; a vontade aprende a preferir Deus em tudo, até cumprir “nada desejar, nada recusar”. O Tratado descreve consolações e aridezes, orações simples e místicas, discernindo ilusões e confirmando o caminho ordinário. Não promete atalhos: indica a cruz cotidiana como lugar do amor purificado e fiel, constante e perseverante.

Entre os acentos mais originais, sobressai o “êxtase da ação”: longe de separar oração e trabalho, Sales ensina que o amor mais alto se realiza na fidelidade às responsabilidades. O coração, inflamado, desce aos deveres com doçura eficaz. Por isso, o Tratado exige direção espiritual prudente e confessores pacientes, capazes de adaptar conselhos. A vida mística não é privilégio de poucos; é plenitude da caridade, possível em qualquer estado. Quando as consolações cessam, permanece a decisão amorosa: cumprir a vontade divina. A santidade, então, torna-se humilde perseverança, feita de atos pequenos, mas contínuos, pelos quais Deus reina discretamente, em nós. 

2.3. Núcleo doutrinário: espiritualidade do amor e santidade laical

Núcleo doutrinário: espiritualidade do amor e santidade laical resume o coração do ensino salesiano. Tudo procede do amor, tende ao amor e vive do amor; por isso, a caridade é forma das virtudes e alma da vida cristã. A devoção, como caridade pronta, ilumina as escolhas concretas com alegria disciplinada. O horizonte é universal: esposos, trabalhadores, autoridades, consagrados, jovens e idosos são chamados à perfeição segundo seu estado, sem copiar modelos alheios. A graça não destrói a natureza; cura-a e eleva-a. Assim, a santidade adquire fisionomia quotidiana, equilibrando fervor com prudência, coragem com mansidão, verdade com caridade, sempre fiel.

Daí a preciosa distinção entre afeto e efeitos. Deus deseja não afetos voláteis, mas afetos que se tornam atos: serviços, renúncias, constância. A devoção autenticamente cristã é incompatível com rigidez amarga e com sentimentalismo inoperante. Sales propõe a santa indiferença, escola de liberdade interior que reza: nada desejar, nada recusar, senão a vontade divina. Não se trata de passividade, mas de prontidão obediente, capaz de mover-se com leveza onde Deus indicar. Desse equilíbrio nasce a paz do coração e a capacidade de carregar cruzes sem perder a alegria. A caridade, assim, permanece tanto contemplativa quanto ativamente laboriosa, e sempre esperançosa. 

2.4. Método pastoral: fazer tudo por amor, nada à força

Método pastoral: fazer tudo por amor, nada à força expressa o modo salesiano de evangelizar. No Chablais, a palavra escrita serviu ao anúncio quando o púlpito era impossível. Panfletos breves, linguagem urbana, respeito pelos interlocutores e visitas perseverantes compuseram um estilo missionário não violento, porém exigente. O objetivo não era vencer debates, mas ganhar almas para Deus, paciente e racionalmente. Essa gramática de persuasão inspira hoje a comunicação católica: clareza doutrinal, caridade no tom, beleza na forma, coragem na verdade. O comunicador cristão é chamado a unir convicção e doçura, evitando caricaturas, atacando erros sem ferir pessoas, com humildade.

No governo episcopal, “doçura firme” significou proximidade constante, visitas pastorais, reforma do clero e direção espiritual personalizada. Sales educava mais pelo atrativo do bem do que pelo medo da punição, sem relativizar a verdade. Exortava com imagens simples, indicava passos possíveis e convidava à confissão frequente. Essa pedagogia acompanha os ritmos da graça e respeita a condição de cada fiel. Quando necessário, corrigia com clareza e ternura, distinguindo erro e errante. Assim, consolidou comunidade eclesial robusta, pacificada e missionária. Seu método permanece atual em tempos polarizados: paciência, integração das fragilidades e fidelidade luminosa à doutrina católica, com esperança perseverante sempre.

Como aplicações, emergem três linhas convergentes. Primeiro, formar leigos capazes de unir oração e trabalho, família e missão, segundo a Filoteia: práticas proporcionadas, exame diário, sacramentos e virtudes sociais. Segundo, aprofundar o discernimento do amor no Tratado: preferir Deus em tudo, acolhendo consolações com humildade e aridezes com fé. Terceiro, adotar comunicação e governo pastoral moldados pela doçura firme: persuasão, escuta, correção caridosa e criatividade missionária. Assim, Sales oferece um caminho seguro para tempos de cansaço e dispersão: voltar ao essencial, deixar-se conduzir pela graça e fazer tudo por amor, nada à força, com paciência luminosa, humilde, fiel e perseverante. 

2.5. Recepção e legado na Igreja

A recepção eclesial de São Francisco de Sales confirma a solidez e a fecundidade de sua doutrina centrada na caridade. Reconhecido Doutor da Igreja no século XIX, ele é lembrado como Doctor amoris, pois articulou, com clareza pastoral e profundidade contemplativa, a primazia do amor de Deus na vida cristã. Esse título não é um adorno honorífico, mas chave hermenêutica: a caridade é forma das virtudes, alma da vida devota e critério do discernimento espiritual. A leitura salesiana do Evangelho, marcada pela mansidão firme, sustentou reformas, orientou consciências, curou escrúpulos e reabriu caminhos de reconciliação onde a controvérsia endurecera corações e ambientes.

Com o passar dos séculos, sua influência ganhou contornos institucionais e simbólicos. O patronato dos jornalistas e comunicadores revela a adequação de seu método aos desafios da palavra pública: argumentar com verdade, escolher linguagem clara, buscar a persuasão caridosa e rejeitar violências verbais. A experiência nos panfletos de Chablais e nas cartas de direção antecipou práticas missionárias que hoje chamamos de cultura digital: proximidade, constância, respeito ao interlocutor e criatividade no uso dos meios. O patronato dos surdos, por sua vez, retém um gesto catequético de ternura inteligente, que ensina a adaptar a linguagem sem diluir a doutrina. O magistério moderno frequentemente evoca Sales para propor comunicação e pastoral centradas na misericórdia verdadeira.

Na historiografia espiritual, Sales aparece como ponte entre tradição patrística e desenvolvimento moderno da vida devota. Seu realismo prudente impediu tanto espiritualismos desencarnados quanto projetos morais de dureza voluntarista. A “democratização” da santidade, tão cara à sua Filoteia, ressoa na vocação universal à santidade proclamada com vigor no século XX, iluminando leigos, famílias, trabalhadores e governantes. Em tempos de polarizações ideológicas e estéticas, seu legado propõe remédio antigo e sempre novo: formar o coração na caridade, ordenar afetos e escolhas, cultivar mansidão que não capitula, exercitar verdade que não agride, servir com perseverança humilde. Por isso, sua figura permanece atual, exigente e consoladora. 

2.6. A Visitação: caridade contemplativa ao alcance de muitas

A fundação da Ordem da Visitação de Santa Maria, em 1610, nasce da amizade espiritual entre Francisco de Sales e Joana de Chantal. O carisma brota de intuição ousada e mansa: oferecer às mulheres um caminho de consagração que unisse forte centralidade no amor de Deus, disciplina prudente e caridade fraterna sem ostentação. Longe de protagonismos espetaculares, a Visitação propunha humildade, delicadeza no trato e serviço alegre, de modo a acolher também aquelas que, por idade ou fragilidades, não podiam observar regras mais duras. Era um mosteiro aberto ao coração de Jesus, que queria formar esposas do Espírito na escola tranquila das pequenas fidelidades cotidianas.

Sales acompanhou pessoalmente as primeiras comunidades, oferecendo conferências recolhidas depois como Entretenimentos espirituais. Nelas, a doutrina torna-se concreta: oração simples, amor obediente, exame breve, caridade fraterna, mortificações moderadas e alegria no dever. A vida quotidiana, ritmada pela liturgia, é vista como lugar de encontro real com Deus. O fundador insiste em que a mansidão não é suavidade débil, mas fortaleza discreta; que a obediência não é servilismo, mas adesão amorosa; que a humildade não é desânimo, mas verdade iluminada pela esperança. A Visitação converteu a “santa indiferença” em prática comunitária: nada desejar, nada recusar, senão a vontade divina, sempre, com serenidade.

O impacto eclesial da Visitação ultrapassou os claustros. Entre as Visitandinas, a espiritualidade do Coração de Jesus encontrou terreno preparado, fecundando devoções e obras de misericórdia. Muitas comunidades tornaram-se centros discretos de direção espiritual para leigos e clero, irradiando a pedagogia salesiana da doçura firme. Hoje, o carisma continua provocação profética: viver o essencial sem barulho, cultivar a caridade doméstica, preferir a fidelidade às modas espirituais, praticar hospitalidade do coração e comunicação respeitosa. Numa cultura de aceleração e de exibição, a Visitação testemunha o poder transformador da presença silenciosa de Deus, sustentando a missão da Igreja com intercessão, paciência e serviço. 

2.7. Aplicações pastorais e linhas de ação

Aplicar a herança salesiana às necessidades atuais requer discernimento e coragem mansa. Para os leigos, a Filoteia continua roteiro seguro: começar pelo essencial, consolidar sacramentos e oração, ordenar afetos, traduzir sentimentos em atos e perseverar nas pequenas obras. Na família, cultivar mansidão no diálogo, correção afável, perdão rápido e generosidade. No trabalho, unir competência e honestidade, tempo para Deus e serviço social. No espaço público, praticar civilidade cristã e argumentar sem agressões. Exames diários simples e renovação anual de propósitos ajudam a manter o coração atento, prevenindo escrúpulos e acídia. A regra é clara: amar mais e melhor, com prudência e alegria perseverantes.

Para o clero e os agentes pastorais, o método de “doçura firme” oferece balizas claras. A formação contínua integra doutrina sólida, vida de oração e habilidades de comunicação. Homilias curtas, bem preparadas, com imagens simples e aplicações concretas; confissão acolhedora, paciente, que ilumina sem esmagar; direção espiritual que respeita ritmos; correção fraterna que distingue erro e errante. Nos Conselhos e processos sinodais, cultivar escuta real, linguagem limpa, critérios doutrinais e caridade na divergência. A disciplina eclesial, quando necessária, deve ser medicinal, buscando curar, e não humilhar. Em tudo, confiança nos meios ordinários da graça e proximidade com as pessoas, sobretudo as cansadas e feridas.

Aos comunicadores católicos, Sales propõe uma gramática missionária que une convicção e doçura. Planejar conteúdos com intenção pastoral explícita, argumentar com fontes confiáveis, evitar slogans divisivos, preferir perguntas honestas a ironias, cultivar beleza formal e caridade no tom. Nas redes, praticar jejum de reatividade, checar informações, responder com serenidade, reconhecer erros e repará-los. A apologética deve ser bíblica, patrística e racional, sem sarcasmo. O objetivo não é vencer, mas ajudar a verdade a ser amada. Onde houver hostilidade, oferecer mansidão firme; onde houver confusão, esclarecer com paciência. Assim, a comunicação torna-se evangelização que consola, instrui, reconcilia e edifica comunidades perseverantes, abertas, resilientes, luminosas.

 

CONCLUSÃO

Ao longo deste percurso, a vida e a doutrina de São Francisco de Sales mostraram-se convergentes como duas faces de um mesmo dom: a caridade que pensa, discerne, consola e governa. A biografia revela a fonte: uma confiança aprendida na provação, transformada em mansidão eficaz. As obras oferecem método: iniciar com a Filoteia o caminho de virtudes proporcionadas ao estado de vida e, no Tratado, conduzir a vontade à união com Deus, onde oração e dever se abraçam no “êxtase da ação”.

O núcleo doutrinário devolve-nos o essencial: tudo procede, tende e vive do amor, enquanto a “santa indiferença” educa a liberdade para desejar apenas a vontade divina. O método pastoral indica como: persuasão paciente, linguagem clara, correção caridosa, confiança nos meios ordinários da graça. O legado confirma a atualidade do Doctor amoris; a Visitação encarna, em forma comunitária, a doçura forte; e as aplicações traduzem o caminho para lares, paróquias e ambientes digitais.

Em síntese, Sales não propõe um heroísmo esporádico, mas uma fidelidade miúda, constante, alegre: fazer tudo por amor, nada à força. Se acolhida com humildade e praticada com perseverança, essa via cura durezas, dissipa escrúpulos, pacifica a inteligência e abre o coração para Deus e para o próximo, tornando a Igreja mais luminosa no mundo.

 

ORAÇÃO DE ENCERRAMENTO

Senhor Jesus, “Deus do coração humano”, inflama em nós a caridade que São Francisco de Sales ensinou: devoção como amor pronto e operoso, que transforma deveres em ofertas e o cotidiano em altar. Dá-nos mansidão forte, para persuadir sem ferir e servir sem exigir.

Espírito Santo, educa-nos na santa indiferença: nada desejar, nada recusar, senão a tua vontade. Conforma nossos afetos à cruz e à alegria do Evangelho, para que o êxtase da ação nos santifique nas pequenas fidelidades de cada dia.

Maria, Senhora da Visitação, torna-nos apressados na caridade e firmes na doçura. Faze-nos comunicadores do bem, como o teu servo Francisco, para que a verdade, dita com amor, vença a dureza dos corações e a Igreja resplandeça no mundo. Amém.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes primárias

  • Sales, François de. Œuvres de Saint François de Sales, évêque de Genève et docteur de l’Église. 27 vols. Annecy: Monastère de la Visitation, 1892–1964.

  • Sales, Francisco de. Introdução à Vida Devota (Filoteia). São Paulo: Paulus, 2019.

  • Sales, Francisco de. Tratado do Amor de Deus. São Paulo: Ecclesiae, 2018.

  • Sales, Francisco de; Joana de Chantal. Letters of Spiritual Direction. Editado por Wendy M. Wright e Joseph F. Power. New York: Paulist Press, 1988.

Estudos e biografias

  • Kleinman, Ruth. Saint François de Sales and the Protestants. Genève: Droz, 1962.

  • Ravier, André. François de Sales. Paris: Nouvelle Cité, 1985.

  • Chorpenning, Joseph F., ed. Encountering Anew the Familiar: Francis de Sales’s Introduction to the Devout Life at 400 Years. Philadelphia: St. Joseph’s University Press, 2010.

  • Dailey, Thomas F. Behold This Heart: St. Francis de Sales and Devotion to the Sacred Heart. White Plains, NY: Peter Lang, 2020.

  • Costa, Ana. “S. Francisco de Sales, Director Espiritual.” Via Spiritus 22 (2015): 5–29.

Magistério e documentos correlatos

  • Francisco, Papa. Totum Amoris Est: Carta Apostólica no IV Centenário da Morte de São Francisco de Sales. Vaticano, 28 de dezembro de 2022.

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