Santo Ambrósio de Milão: Doutor da Igreja, Defensor da Fé e Modelo de Pastor
- escritorhoa
- 7 de dez. de 2024
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Atualizado: 6 de out.
INTRODUÇÃO
No cruzamento entre a basílica e o fórum, entre o altar e a praça pública, ergue-se Santo Ambrósio de Milão (c. 334–397) como um dos rostos mais luminosos do século IV. Jurista de carreira, catecúmeno surpreendido pela eleição, tornou-se bispo e pai: um pastor que uniu elegância clássica, firmeza dogmática e caridade operosa. Sua voz ressoou quando a Igreja, recém-saída das perseguições, enfrentava a prova do arianismo e a tentação de confundir a fé com interesses de corte. Ambrósio respondeu como místico e como maestro: interpretou a Escritura com leitura cristológica, abriu a liturgia como escola de fé e compôs hinos que gravaram no coração do povo a doutrina que defendia com mansidão intrépida.
O que delineia sua fisionomia espiritual não é a originalidade pela originalidade, mas a fidelidade criativa: beber nas fontes — Escritura, Tradição, oração — para iluminar o presente. Em suas catequeses mistagógicas, a Palavra e o Espírito fazem do Batismo e da Eucaristia o centro vital da vida cristã; em seus tratados sobre penitência, a misericórdia cura sem disfarçar a gravidade do pecado; em seus escritos dogmáticos, a confissão da Trindade resplandece como regra de oração e de vida. A amizade com Agostinho, o discernimento diante do poder imperial e a organização da caridade mostram um pastor inteiro, que pensa ajoelhado e governa servindo.
Este artigo apresenta sua biografia no contexto das controvérsias do século IV, percorre seus escritos principais e propõe, por fim, uma recepção aplicada do seu ensinamento para hoje. O objetivo é simples e exigente: redescobrir, com Ambrósio, que a Igreja evangeliza quando une Palavra, Sacramento e Caridade; e que, aprendendo a orar o que crê, o povo de Deus encontra a força para viver o que celebra.

2. VIDA, OBRA E LEGADO DE SANTO AMBRÓSIO
2.1 Biografia e contexto histórico
Santo Ambrósio (c. 334–397) nasceu em Tréveros, no coração do Império Romano, em uma família cristã de alta posição administrativa. Formado nas letras clássicas e no direito, recebeu sólida educação retórica e jurídica em Roma, respirando o ethos de uma cultura que valorizava a lei, a ordem e a palavra bem articulada. Sua carreira de funcionário imperial levou-o a Milão como governador da província da Ligúria-Emília, quando a cidade, sede imperial do Ocidente, era palco de tensões políticas e religiosas. Aí amadureceu a sua singularidade: homem público, culto e decisivo, mas de fé discreta, ainda catecúmeno, atento aos desafios que atravessavam a Igreja e o Estado.
Vocação inesperada ao episcopado
Em 374, no meio de acirrada disputa entre católicos e arianos pela sucessão episcopal, Ambrósio dirigiu-se à basílica para garantir a ordem. Sua intervenção pacificadora, de uma prudência rara, impressionou tanto que a assembleia, movida — como se dizia — pelo clamor do povo e pela providência de Deus, aclamou-o bispo. Surpreso, tentou esquivar-se, lembrando que nem sequer era batizado; mas a Igreja discerniu ali um pastor. Em poucos dias, recebeu o batismo, as ordens e, por fim, a sagração episcopal. Desde então, assumiu Milão com o coração de um pai e a mente de um jurista convertido em teólogo: devolveu bens aos pobres, vendeu parte do patrimônio e iniciou uma ampla obra de catequese e reforma eclesial. Seu episcopado revelará um estilo: firmeza doutrinal com doçura pastoral; austeridade pessoal com ternura para com os fracos; coragem diante do poder sem perder a prudência.
A Igreja no século IV: campo de provas
O contexto em que Ambrósio floresce é o do pós-Constantino. A paz da Igreja não significou fim de conflitos; ao contrário, deu visibilidade às tensões internas quanto ao mistério de Cristo e do Espírito. A controvérsia ariana — com nuances e partidos diversos — dividia cidades e cortes. Em Milão, a pressão por basílicas e por bispos favoráveis a soluções ambíguas era constante. Como bispo, Ambrósio discerniu que a caridade cristã não autoriza concessões na confissão da divindade do Filho e do Espírito: a verdade une porque cura; a heresia divide porque fere o coração do Evangelho. Suas homilias, catequeses e hinos — o chamado “canto ambrosiano” — tornaram-se instrumentos de formação e unidade do povo. Doutor da Igreja porque foi pastor, ele ensinou cantando e cantou para ensinar, fazendo da liturgia o lugar onde a ortodoxia se gravava não apenas na mente, mas também nos afetos dos fiéis.
O método do pastor: Escritura, liturgia e disciplina
Três linhas caracterizam sua ação. Primeiro, a centralidade da Escritura lida na Igreja: tipologia e leitura cristológica conduzem do Antigo ao Novo, ancorando a fé no Cristo total. Segundo, a liturgia como escola: nas catequeses mistagógicas, especialmente aos neófitos, introduz ao realismo sacramental — a eficácia provém da palavra de Cristo e da invocação do Espírito. Terceiro, a disciplina eclesial: clero sóbrio, caridade organizada, cuidado dos vulneráveis e insistência na penitência como medicina. Pastoralmente, sua eloquência jamais se separa da vida concreta da comunidade, e seu latim elegante se curva para ser compreendido por todos.
Conflitos com a corte: coragem e prudência
Milão era cruzamento de decisões políticas que atingiam a Igreja. Ambrósio tratou os imperadores como filhos da Igreja, não como seus senhores. Em momentos cruciais, defendeu a inviolabilidade das basílicas contra imposições arianas e, mais tarde, exortou o próprio imperador Teodósio à penitência após o massacre de Tessalônica. Não se tratou de desafio pueril ao poder, mas de alta caridade pastoral: recordar ao soberano a lei de Deus para que a justiça não se divorciasse da misericórdia. Assim, delineou-se um princípio que marcará a tradição ocidental: a Igreja não usurpa a política, mas ilumina as consciências, preservando a liberdade da fé e o primado do bem comum.
Amizades santas e escola ambrosiana
Ninguém se santifica sozinho. Em torno de Ambrósio formou-se uma verdadeira escola espiritual e intelectual. De um lado, mulheres consagradas, viúvas e virgens — a quem dedicou tratados que unem louvor da castidade à defesa da dignidade feminina na Igreja. De outro, jovens intelectuais que buscavam a verdade. Entre eles, Agostinho de Hipona, que em Milão encontrou uma liturgia bela e uma exegese que não violentava a razão. O canto com o povo, as leituras bem explicadas, a catequese sólida e a figura de um bispo que unia autoridade e humildade abriram a Agostinho o caminho da conversão. O testemunho ambrosiano mostra que a verdadeira apologética é pastoral: a verdade convence quando brilha na caridade.
Obras e magistério de um pastor
A produção de Ambrósio nasce de necessidades concretas do pastoreio. Diante do arianismo, redige tratados doutrinários sobre a Trindade, especialmente a divindade do Espírito. Frente aos desafios da iniciação cristã, compõe catequeses mistagógicas que explicam Batismo, Crisma e Eucaristia, insistindo que a Igreja vive do que celebra. Na área moral, aborda virgindade, viuvez, justiça, liberdade interior e misericórdia, sempre com olhar pedagógico. Seu estilo alia firmeza argumentativa a imagens bíblicas, e a doutrina, longe de aridez, torna-se poesia que educa os afetos. Por isso sua pregação permanece atual: oferece critérios, não slogans; forma consciências, não torcidas.
Últimos anos, morte e legado
Os últimos anos consolidaram o seu papel de pilar entre Igreja e Império. Cansado, mas fecundo, continuou a ensinar, a reconciliar e a defender a integridade da fé. Faleceu em 4 de abril de 397, deixando uma Igreja mais unida, um clero mais consciente de sua missão e um povo nutrido pela liturgia e pela caridade. Seu legado atravessa séculos: a métrica dos hinos que influenciará a tradição latina; o modelo de bispo que sabe falar aos poderosos sem temer, mas também sem humilhar; a doutrina sacramental que afirmará com clareza o realismo litúrgico; a disciplina penitencial que cura sem condescendência. Em Ambrósio, o Ocidente aprende que a ortodoxia verdadeira é fecunda, porque é adoração e vida — e que a autoridade pastoral é serviço que protege o rebanho para que, em toda circunstância, Cristo seja confessado como Senhor.
Em síntese, a biografia de Santo Ambrósio é a história de uma conversão do foro civil ao foro do Evangelho: o jurista torna-se pai, o orador torna-se mistagogo, o governador torna-se servo da verdade. Seu tempo, com suas crises doutrinárias e políticas, parece distante e, ao mesmo tempo, muito próximo do nosso. Por isso sua figura permanece farol: quem aprende com Ambrósio descobre que a Igreja evangeliza quando une Palavra, Sacramento e Caridade; e que, sustentada por esse tripé, pode enfrentar tempestades sem perder a paz, porque sabe em quem crê e de onde recebe a sua força.
2.2 Escritos e obras
A obra de Santo Ambrósio nasce no cadinho da pastoral: cada tratado, homilia e hino responde a uma necessidade concreta do rebanho. Por isso, seus escritos não são sistemas abstratos, mas teologia ajoelhada que se articula ao ritmo do ano litúrgico e aos desafios doutrinais do século IV. Em linhas gerais, podemos distinguir cinco grandes conjuntos: escritos dogmáticos (sobretudo trinitários), catequeses mistagógicas e sacramentais, textos sobre penitência e disciplina eclesial, tratados de moral/ascese e vida consagrada, além da produção exegética e hínica que impregnou a oração do povo. O fio unificador é sempre o mesmo: a Escritura, lida na Igreja e celebrada na liturgia, gera vida nova.
1) Dogmáticos trinitários: confessar o Filho e o Espírito
Entre os textos de combate, salientam-se o De fide e o De Spiritu Sancto. No primeiro, Ambrósio defende a consubstancialidade do Filho com o Pai, retomando o homoousios de Niceia e demonstrando, pela Escritura, que a glória, os nomes e as obras atribuídos a Deus cabem igualmente ao Verbo eterno. Sua estratégia não é meramente dialética; é pastoral: proteger a oração do povo. Se a Igreja canta e adora a Cristo como Deus, não pode tolerar fórmulas ambíguas que, na prática, dissolvam a piedade. No De Spiritu Sancto, redigido num momento em que alguns aceitavam a divindade do Filho mas hesitavam quanto ao Espírito, Ambrósio apresenta o Paráclito como Senhor e doador de vida, coigual em honra e poder. A prova se dá por “convergência de evidências”: nomes divinos, atribuições (santificar, vivificar, sondar os segredos de Deus), presença operante nos sacramentos e na missão da Igreja. Assim, a confissão trinitária, longe de tecnicismo, torna-se regra de oração e de vida.
2) Mistagogia sacramental: De mysteriis e De sacramentis
Seus dois opúsculos mistagógicos, dirigidos aos neófitos, são joias da tradição latina. Em De mysteriis, Ambrósio conduz os recém-batizados a rememorar, com inteligência espiritual, aquilo que celebraram: desnudamento e unção, imersão batismal, selo do Espírito, aproximação do altar. O método é contemplativo e catequético ao mesmo tempo: ele parte do rito, evoca a tipologia bíblica (Mar Vermelho, Naaman, a água do lado de Cristo) e exprime o realismo sacramental com precisão: não é a “natureza” da água que purifica, mas a bênção — a verba Christi — e a invocação do Espírito. Em De sacramentis, de tom semelhante, o bispo expõe a economia do Batismo, Crisma e Eucaristia, insistindo que a Igreja vive do que celebra. Ao descrever a Eucaristia, move-se com delicada ousadia: quem consagra é Cristo por sua palavra eficaz; quem transforma é o Espírito pela epiclese; quem comunga é a Igreja, corpo de Cristo. Esta tríplice ênfase — palavra, Espírito, corpo eclesial — fundamenta um “realismo com sobriedade”: sem escolasticismos anacrônicos, mas com fé objetiva na presença real e na eficácia dos ritos.
3) Penitência e disciplina: a medicina da misericórdia
O tratado De paenitentia nasce da crise provocada pelo rigorismo novacianista e da necessidade de esclarecer a autoridade da Igreja. Ambrósio afirma, com equilíbrio, o poder de “ligar e desligar” confiado por Cristo e o caráter medicinal da penitência. O bispo não é dono do perdão, mas servo da reconciliação; não é juiz que humilha, mas médico que prescreve remédio e pede adesão livre do penitente. A doutrina articula justiça e misericórdia: há gravidade real do pecado, necessidade de contrição e propósito de emenda, e há igualmente alegria pela volta do filho, porque a Igreja existe para restaurar. Em tal horizonte, o fórum interno é espaço de cura e verdade; e a disciplina eclesial, longe de dureza, aparece como pedagogia para a liberdade. O impacto pastoral é decisivo: comunidades equilibradas entre firmeza e ternura, capazes de reerguer os caídos e proteger os pequenos.
4) Moral, ascese e a dignidade da vida consagrada
Ambrósio dedica atenção particular à vida virginal e à condição das viúvas, compondo tratados como De virginibus e De viduis. Neles, a castidade é apresentada não como negação do corpo, mas como forma positiva de caridade indivisa, sinal escatológico do amor de Cristo. A pedagogia ambrosiana é realista: exorta, mas não idealiza; reconhece fragilidades, mas oferece meios concretos — oração, guarda do coração, sobriedade — para perseverar. Ao mesmo tempo, os escritos morais iluminam a vida laical: virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza, temperança) e teologais (fé, esperança, caridade) são integradas a uma ética do cotidiano, que abarca o uso dos bens, a justiça no trabalho, a linguagem veraz, a defesa dos fracos. Assim, o ideal evangélico torna-se caminho praticável para todos, sem confundir estados de vida, mas chamando cada um à perfeição da caridade.
5) Exegese viva: Salmos, figuras e o Cristo total
A produção exegética de Ambrósio, com destaque para comentários aos Salmos, nasce do púlpito e retorna a ele. Lendo a Escritura com os Padres e na comunhão eclesial, ele articula sentidos — literal, típico e espiritual — sem abstrair da história da salvação. O método é profundamente cristológico: o Antigo Testamento é “promessa” cuja plenitude se dá em Cristo; os Salmos são voz de Cristo e da Igreja (Cabeça e membros). Tal leitura não é preciosismo: torna a oração bíblica alimento do povo e forma a mente católica. O resultado é uma exegese que canta: a doutrina vira salmo, e o salmo se torna doutrina vivida. Não por acaso, sua influência alcança Agostinho e toda uma linhagem que enxerga na liturgia o lugar privilegiado de interpretação das Escrituras.
6) Hinos e “canto ambrosiano”: doutrina que se canta
Talvez nenhuma contribuição seja tão popular quanto sua atividade hínica. O chamado “canto ambrosiano” não é apenas um estilo musical, mas uma pedagogia teológica: versos de métrica simples, acentos regulares, conteúdo dogmático nítido, cantados pelo povo. Em tempos de confusão, Ambrósio catequiza pela beleza: compor hinos que o povo memoriza é gravar, no coração, verdades de fé. Títulos como Aeterne rerum Conditor e Veni, Redemptor gentium (em tradições posteriores) testemunham como cristologia e encarnação, Trindade e redenção se tornaram oração cotidiana. O canto congregacional, longe de entretenimento, é ato doutrinal e pastoral: unifica, consola, fortifica. A música torna-se escola de ortodoxia afetuosa, onde a mente aprende porque o coração saboreia.
Estilo e método: a teologia que nasce do altar
Linguisticamente, Ambrósio alia elegância e clareza. Seu latim é clássico, mas hospitaleiro: não ostenta erudição; serve a verdade. A arquitetura dos textos costuma alternar breves teses, provas escriturísticas e imagens que iluminam a inteligência e inflamam a vontade. Três convicções estruturam seu método: (1) a Escritura interpreta a Escritura, mas sempre na Igreja, com os símbolos da fé por regra; (2) a liturgia é matriz teológica — o que a Igreja crê, ela canta e celebra; (3) a disciplina eclesial guarda os frágeis e corrige os fortes, porque a verdade é caridade. Por isso, seus escritos atravessam os séculos com frescor: respondem a perguntas permanentes (quem é Cristo? como age o Espírito? o que fazem os sacramentos? como viver a liberdade cristã?) e oferecem critérios para tempos de turbulência.
Influência e recepção: um clássico para todos os tempos
A tradição reconheceu em Ambrósio um mestre: doutor da Igreja, formador de santos (baste recordar a amizade com Agostinho), arquiteto de uma mística acessível cujo centro é Cristo presente na palavra e no sacramento. Sua teologia moldou a catequese do Ocidente, inspirou práticas litúrgicas e consolidou um ethos cristão que harmoniza verdade e mansidão. Nos debates trinitários, sua voz ajudou a estabilizar a confissão da divindade do Espírito; na pastoral sacramental, edificou um caminho que conduz neófitos e antigas comunidades ao coração do mistério; na vida moral, ofereceu uma rota segura entre laxismo e rigorismo; na música, deixou um caminho de beleza sóbria a serviço da fé. Lendo hoje seus escritos, descobre-se uma chave de ouro: a Igreja evangeliza quando une doutrina clara, ritos luminosos e caridade concreta. Eis o segredo ambrosiano, tão simples quanto exigente — e por isso mesmo sempre atual.
2.3 Aplicação contemporânea e pastoral
Em Ambrósio, a doutrina nasce do altar, ilumina a consciência e se traduz em caridade. Quatro eixos sintetizam seu legado para hoje: (1) mistagogia dos sacramentos, (2) penitência como medicina, (3) verdade que se faz caridade, (4) consciência cristã na vida pública.
1) Mistagogia dos sacramentos: identidade cristã em tempos líquidos
Ambrósio contempla os sacramentos como lugar onde Deus forma o seu povo: não simples símbolos, mas sinais eficazes que comunicam o que significam. A entrada na vida nova não se reduz a um rito de passagem sociocultural; é regeneração real pela graça, selada na fé e na invocação do Nome trinitário. Por isso, o Batismo não é apenas “lembrança”, é fonte identitária: nele o homem velho morre e nasce o filho adotivo. A Eucaristia, por sua vez, não é metáfora de comunhão, mas alimento que incorpora ao Corpo de Cristo e conforma a existência ao seu amor.
Num contexto de identidades instáveis e vínculos frágeis, a mistagogia ambrosiana ensina a redescobrir o “de onde” e o “para quem” vivemos. O domingo, coração do tempo, devolve coerência à semana; a participação consciente na liturgia molda a inteligência e educa os afetos; a escuta da Palavra, unida ao Sacramento, torna a fé robusta, capaz de resistir a modismos espirituais. Assim, a pertença cristã deixa de ser rótulo e torna-se forma de vida: nascer do Batismo, alimentar-se da Eucaristia, perfumar-se com o Espírito — eis a síntese que Ambrósio quis gravar no povo.
2) Penitência e misericórdia: a cura possível
Para Ambrósio, a Igreja não relativiza o pecado nem desespera do pecador. Se há chagas reais — culpas que ferem a própria pessoa e a comunhão — há também remédio real: a misericórdia de Cristo, aplicada no ministério da reconciliação. A penitência não é punição humilhante, mas medicina que restabelece a verdade interior e reordena a liberdade. Nela, a confissão honesta rasga o véu das autojustificações; a absolvição não é simples “declaração”, mas dom que restitui a amizade com Deus; a satisfação e o propósito de emenda inauguram um caminho concreto de reparação.
Diante de uma cultura que alterna cancelamento e permissividade, o horizonte ambrosiano oferece equilíbrio: a justiça de Deus não sufoca, cura; a disciplina eclesial, longe de dureza, é pedagogia da esperança. A reconciliação é, portanto, escola de responsabilidade e de paz: quem foi perdoado aprende a perdoar; quem voltou ao redil torna-se sinal de que a graça é mais forte que a queda. Assim, a comunidade inteira é preservada do cinismo (que banaliza o mal) e do rigorismo (que nega a possibilidade de recomeço).
3) Verdade e caridade: firmeza mansa contra heresias e polarizações
O combate de Ambrósio ao arianismo revela um princípio perene: amar é guardar a verdade de Deus. Não há oposição entre doçura pastoral e clareza dogmática; a caridade cristã é intrépida porque deseja o bem do outro — e o bem começa pela confissão do Deus verdadeiro. A verdade, porém, não é aríete para vencer adversários, é luz para curar consciências. Por isso, Ambrósio não separa o credo da oração: aquilo que a Igreja crê, ela canta; o que canta, ela vive.
Numa era de slogans e hiperpolarização, essa lógica impede dois abismos: o relativismo, que dissolve a fé num sentimento vago, e a agressividade ideológica, que usa a ortodoxia como arma de facção. A escola ambrosiana propõe outra via: estudar o símbolo da fé, saborear as palavras da liturgia, deixar-se conduzir pelo Espírito a uma confissão que pacifica e unifica. A firmeza na doutrina, unida à mansidão no trato, gera comunidades críveis: a luz convence sem estridência, e a beleza do culto preserva a integridade da fé no coração dos simples.
4) Igreja e vida pública: consciência iluminada, não poder paralelo
Quando exortou o imperador à penitência, Ambrósio não confundiu os planos: não quis “teocratizar” o Estado, mas recordou que a autoridade terrena também está sujeita à lei de Deus. Esse gesto delineia um critério permanente: a Igreja não se identifica com projetos políticos, mas forma consciências capazes de agir pelo bem comum. Ela não substitui a prudência dos governantes e cidadãos, mas oferece princípios — dignidade da pessoa, primado da verdade, inseparabilidade entre justiça e misericórdia — para orientar escolhas.
Numa sociedade atravessada por dilemas bioéticos, tensões econômicas e violência simbólica, o caminho ambrosiano inspira o testemunho coerente dos fiéis no trabalho, na família, na cultura e na política. Consciência formada, retidão de intenção e coragem humilde permitem dizer “sim” ao que promove a vida e “não” ao que fere os pequenos — sem fanatismo nem omissão. Assim, a santidade deixa de ser fuga e se torna fermento: presença discreta e eficaz que, como o canto aprendido na Igreja, ressoa no mundo com notas de verdade, bondade e beleza.
Em resumo, a recepção contemporânea de Ambrósio pode ser condensada nestas quatro linhas de força: (1) a liturgia gera identidade; (2) a misericórdia cura com verdade; (3) a doutrina ilumina com mansidão; (4) a consciência cristã serve o bem comum. Não se trata de programa, mas de forma de vida. Onde a Igreja vive assim, a fé não é ideia; é encontro que integra, reconcilia, unifica e envia.
CONCLUSÃO
A figura de Santo Ambrósio é um convite a recompor a unidade do cristianismo vivido: crer com a inteligência iluminada, celebrar com o coração inflamado, agir com a caridade que não teme a verdade. Nele, o realismo sacramental resgata a fé do subjetivismo; a disciplina da penitência purifica a vida da banalização do mal; a clareza trinitária livra a oração de ambiguidades; a prudência diante dos poderosos preserva a liberdade da Igreja. Por isso, sua lição não se perde com os séculos: onde se canta o que se crê e se vive o que se canta, a fé torna-se forma de vida, não opinião.
De seu púlpito em Milão ecoa um método: aproximar o povo do mistério passando pelas portas da liturgia; ensinar a ler a Escritura de modo cristológico e eclesial; formar consciências que unam justiça e misericórdia. O bispo que exortou um imperador à penitência é o mesmo que, com ternura de pai, conduziu neófitos à mesa do Cordeiro. O jurista convertido em mistagogo nos lembra que a autoridade cristã é serviço: proteger a fé dos simples, corrigir com mansidão os que erram, encorajar os cansados.
Ao concluir, permanecem quatro linhas de força que podem orientar nosso tempo: a liturgia gera identidade; a misericórdia cura com verdade; a doutrina ilumina com mansidão; a consciência cristã serve o bem comum. Que a intercessão de Santo Ambrósio nos obtenha o dom de uma fé coerente, uma esperança robusta e uma caridade corajosa — para que, fortalecidos pela Palavra e pelos sacramentos, sejamos Igreja que adora, evangeliza e reconcilia, até que tudo ressoe no louvor da Trindade Santa.
ORAÇÃO DE ENCERRAMENTO
Ó Deus, Pai de misericórdia, nós Te bendizemos porque, em Santo Ambrósio, deste à Tua Igreja um pastor segundo o Teu coração: firme na verdade, terno na caridade. Pela luz do Teu Espírito, faze-nos amar a Tua Palavra, saborear os santos mistérios e viver cada domingo como fonte e cume de toda a nossa semana.
Senhor Jesus, Verbo feito carne, ensina-nos, por intercessão de Teu servo Ambrósio, a reconhecer-Te nos sacramentos: que o Batismo nos dê forma de filhos, a Eucaristia nos una ao Teu Corpo e a Penitência nos cure das feridas do pecado. Dá-nos mansidão sem concessões à mentira, coragem sem dureza, alegria em servir os pequenos.
Espírito Santo, doce hóspede da alma, inflama-nos na santidade do cotidiano. Forma em nós consciências retas para o bem comum e um coração que canta o que crê e vive o que canta. Maria, Mãe da Igreja, sustenta-nos no caminho. Santo Ambrósio, rogai por nós. Amém.
REFERÊNCIAS
Fontes primárias — Santo Ambrósio
Ambrósio de Milão. De fide.
Ambrósio de Milão. De Spiritu Sancto.
Ambrósio de Milão. De mysteriis.
Ambrósio de Milão. De sacramentis.
Ambrósio de Milão. De paenitentia.
Ambrósio de Milão. Comentários aos Salmos.
Magistério e Concílios
Concílio de Niceia I (325). “Símbolo Niceno.”
Concílio de Constantinopla I (381). “Símbolo Niceno-Constantinopolitano.”
Santos Padres correlatos
Agostinho de Hipona. Confessiones.
Agostinho de Hipona. Sermones.




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