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Santo Anselmo de Cantuária: A fé que busca compreender

Atualizado: 19 de ago.

ARTIGO - SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIACaminho de Fé

INTRODUÇÃO

Na história da Igreja, há homens e mulheres que se destacam não apenas por sua santidade de vida, mas também pela profundidade com que mergulharam no mistério de Deus, unindo contemplação e reflexão, oração e estudo. Entre essas figuras, Santo Anselmo de Cantuária (1033–1109) ocupa um lugar singular. Monge beneditino, arcebispo, mestre de teologia e filosofia, é reconhecido como Doutor da Igreja e considerado o “Pai da Escolástica”, por ter lançado as bases de um método de investigação teológica que influenciaria profundamente os séculos seguintes.

Anselmo viveu num tempo de transformações e tensões: o século XI, marcado pela Reforma Gregoriana, que buscava purificar e fortalecer a vida eclesial; pelas disputas entre o poder temporal dos reis e a autoridade espiritual do Papa; e por uma efervescência cultural que começava a dar mais espaço ao estudo sistemático e à argumentação racional.

É nesse contexto que o lema anselmiano — fides quaerens intellectum (“a fé que busca compreender”) — adquire todo o seu peso. Para Anselmo, a fé não é uma crença cega, mas o ponto de partida para uma busca intelectual apaixonada. Ele não pretende provar a fé para aqueles que não creem, mas mostrar aos que creem que é razoável e belo compreender aquilo em que se crê.

Neste artigo, aprofundaremos a vida, o contexto histórico, o pensamento teológico e filosófico, as obras e o legado de Santo Anselmo, buscando compreender como sua herança espiritual e intelectual pode inspirar a vivência da fé católica hoje.
Imagem de Santo Anselmo de Cantuária em vestes episcopais, com báculo e livro, olhando para o céu em atitude contemplativa.

2. Fundamentos de uma mente que une fé e razão

2.1. Vida e contexto histórico

Infância e juventude (1033–1059)

Anselmo nasceu em 1033 (ou início de 1034) na cidade de Aosta, no Piemonte, então parte do Reino da Borgonha. Filho de Gandulfo, um nobre de temperamento severo e mundano, e de Ermemberga, mulher de virtude e piedade reconhecidas, Anselmo recebeu de sua mãe as primeiras sementes da fé. Desde pequeno, demonstrou sensibilidade espiritual e gosto pelo estudo.

Um episódio marcante de sua infância ilustra essa disposição: Anselmo sonhou que subia ao alto de uma montanha — símbolo dos Alpes que cercavam Aosta — e lá encontrava a “morada de Deus”. No sonho, o Senhor o convidava para um banquete celestial e lhe oferecia um pão “extremamente cândido”. Essa visão permaneceu viva em sua memória e foi interpretada como sinal de um chamado especial.

Aos 15 anos, sentiu-se movido a ingressar na Ordem de São Bento, mas seu pai se opôs firmemente. Mesmo quando, acometido de grave enfermidade, pediu o hábito monástico como último consolo, Gandulfo negou. Após a morte prematura da mãe, Anselmo passou por um período de dispersão e rebeldia, afastando-se de Deus e relaxando nos estudos.

Aos 18 anos, em conflito com o pai, deixou a casa e iniciou uma série de viagens pela França. Foram três anos de busca e de amadurecimento pessoal, nos quais experimentou o mundo, mas manteve no coração a inquietação pela verdade.

Conversão e vida monástica em Bec (1060–1078)

Por volta de 1060, Anselmo chegou à Normandia e foi atraído pela reputação do prior Lanfranco de Pavia, mestre célebre da Abadia de Bec. Sua entrada na comunidade monástica foi o ponto de virada definitivo: ali encontrou um ambiente de intensa vida de oração e rigor intelectual.

Anselmo rapidamente se destacou pela inteligência, disciplina e humildade. Tornou-se prior em 1063, quando Lanfranco foi transferido, e abade em 1078. Durante esse período, escreveu suas primeiras grandes obras — Monologion e Proslogion —, consolidando sua reputação como teólogo e filósofo.

Arcebispo de Cantuária e primeiros conflitos (1093–1097)

Em 1093, após a morte do arcebispo Lanfranco, a sé de Cantuária permaneceu vacante por quase quatro anos, pois o rei Guilherme II (conhecido como “Rufus”) desejava manter o controle dos bens episcopais. Quando, gravemente enfermo, o rei temeu pela vida, apressou-se em nomear Anselmo para o cargo, esperando contar com sua lealdade.

A nomeação, no entanto, trouxe tensões imediatas. Anselmo exigiu que o rei reconhecesse o Papa Urbano II, o que foi aceito a contragosto. Desde o início, o novo arcebispo mostrou-se defensor intransigente da liberdade da Igreja contra as ingerências do poder civil — ponto central da Reforma Gregoriana.

O conflito cresceu quando Guilherme II tentou impedir Anselmo de convocar sínodos e exigia tributos abusivos. Anselmo, diante da impossibilidade de exercer seu ministério livremente, pediu licença para ir a Roma consultar o Papa. Em 1097, partiu em exílio voluntário.

Primeiro exílio e obras escritas em Roma e Lyon (1097–1100)

Durante este período, Anselmo participou do Concílio de Bari (1098), onde defendeu com clareza a doutrina da dupla processão do Espírito Santo (Filioque), segundo a qual o Espírito procede eternamente do Pai e do Filho, sem que isso divida a única origem divina, mas expressando a comunhão perfeita da Trindade. Essa formulação, afirmada pelo Credo latino, foi contestada por teólogos do Oriente, e Anselmo respondeu com argumentos enraizados na Sagrada Escritura e na tradição patrística, mostrando sua fidelidade à tradição latina e ao magistério da Igreja.

Também escreveu importantes tratados, como Cur Deus Homo, no qual explica a necessidade da Encarnação e da morte de Cristo para a salvação da humanidade, obra que estudaremos mais adiante.

Retorno e segundo exílio (1100–1106)

Com a morte de Guilherme II, seu irmão Henrique I subiu ao trono e convidou Anselmo a retornar. No entanto, novas disputas surgiram em torno da investidura episcopal — questão candente na Europa medieval. Henrique insistia em nomear bispos e entregar-lhes o báculo e o anel, símbolos espirituais. Anselmo recusou, obedecendo às determinações papais que proibiam tal prática.

O impasse levou a um segundo exílio, entre 1103 e 1106, até que um acordo foi firmado: o rei deixaria de conceder símbolos espirituais, mantendo apenas a prerrogativa de investir nos bens temporais.

Últimos anos e morte (1106–1109)

Anselmo voltou a Cantuária e dedicou-se aos cuidados pastorais, reformas disciplinares e escrita de tratados espirituais. Morreu em 21 de abril de 1109, na Semana Santa, sendo venerado rapidamente como santo.

Em 1720, o Papa Clemente XI declarou-o Doutor da Igreja, reconhecendo o valor universal de sua doutrina. Sua festa litúrgica é celebrada em 21 de abril.


2.2. Pensamento teológico

O pensamento teológico de Santo Anselmo se articula em torno de um princípio fundamental: a relação harmoniosa entre fé e razão. Sua famosa máxima — fides quaerens intellectum — não é um simples lema, mas o fio condutor de toda a sua obra.

Para Anselmo, a fé é o ponto de partida inegociável. É dom de Deus, recebido pela graça, que ilumina o intelecto e move o coração. Mas, uma vez acolhida, essa fé busca compreender o que crê. Como ele afirma no Proslogion:

“Não procuro compreender para crer, mas creio para compreender.”

2.2.1. A prova ontológica da existência de Deus

O Proslogion, escrito por volta de 1077, contém o célebre “argumento ontológico” — uma tentativa de mostrar racionalmente a existência de Deus, partindo da própria definição de Deus como “Aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado”.

O raciocínio anselmiano é simples e profundo:

  1. Mesmo o insensato que diz “Deus não existe” (cf. Sl 14,1) compreende o conceito de Deus.

  2. Esse conceito existe no intelecto, ao menos como ideia.

  3. Mas se Deus existisse apenas no intelecto, poder-se-ia conceber algo maior: Deus existindo na realidade.

  4. Logo, se Ele é o ser maior concebível, deve existir na realidade e no intelecto.

Esse argumento foi debatido ao longo dos séculos, desde as críticas de Gaunilo, monge contemporâneo de Anselmo, até as reflexões de filósofos modernos. A Igreja, embora não tenha canonizado o argumento como prova obrigatória, reconhece seu valor como expressão da inteligibilidade da fé (cf. Catecismo da Igreja Católica, 31–35).

2.2.2. A soteriologia de “Cur Deus Homo”

Em Cur Deus Homo (“Por que Deus se fez homem?”), Anselmo desenvolve uma explicação teológica da Redenção. Partindo da gravidade infinita do pecado — ofensa a Deus, que é infinito — ele argumenta que somente uma satisfação igualmente infinita poderia restaurar a justiça. Nenhum ser criado poderia oferecer tal satisfação; por isso, era necessário que o próprio Deus assumisse a natureza humana para, em nosso nome, oferecer ao Pai uma reparação perfeita.

Essa doutrina não contradiz, mas complementa as explicações patrísticas sobre a obra redentora, integrando aspectos jurídicos e morais. O Catecismo ecoa essa visão ao afirmar que Cristo “satisfez por nossos pecados” (CIC 615).

2.2.3. Liberdade e graça

Nos tratados De Libertate Arbitrii e De Concordia, Anselmo defende que o livre-arbítrio é a capacidade dada por Deus para conservar a retidão de vontade em vista do bem supremo. Essa liberdade, porém, só se realiza plenamente com a graça divina, que cura e eleva a natureza humana ferida pelo pecado.

Sua posição evita tanto o determinismo quanto o pelagianismo, mantendo o equilíbrio entre a soberania divina e a responsabilidade humana — ensinamento que seria reafirmado no Concílio de Trento.


2.3. Contribuições filosóficas

Santo Anselmo não se via como filósofo no sentido moderno do termo. Ele era, antes de tudo, um monge e pastor de almas. No entanto, sua forma de raciocinar, o rigor lógico e o uso da razão para esclarecer a fé fizeram dele um dos mais importantes precursores da Escolástica.

Seu pensamento filosófico está intrinsecamente unido à teologia. Ele não constrói sistemas autônomos, mas utiliza ferramentas conceituais para aprofundar a compreensão das verdades reveladas. Podemos destacar alguns aspectos-chave:

2.3.1. Influência agostiniana

Anselmo é herdeiro direto de Santo Agostinho. Tal como o bispo de Hipona, parte da interioridade para chegar a Deus: a verdade está impressa na mente humana e aponta para a Verdade absoluta. A diferença é que Anselmo, vivendo no contexto do renascimento intelectual do século XI, dá passos em direção a um método mais analítico e sistemático.

2.3.2. Filosofia como serva da teologia

Para Anselmo, a filosofia não substitui a Revelação, mas serve a ela. Ele recusa a ideia de que a razão humana, isolada, possa atingir plenamente o mistério divino. Ao mesmo tempo, afirma que a fé não teme o exame racional, pois toda verdade vem de Deus.

Esse equilíbrio entre autonomia relativa da razão e primazia da fé será o núcleo da Escolástica, desenvolvida por autores como Pedro Abelardo e, de modo mais completo, São Tomás de Aquino.

2.3.3. Realismo e crítica ao nominalismo incipiente

Já em seu tempo havia discussões sobre a natureza dos universais (ideias gerais como “humanidade”, “bondade”). Anselmo tende ao realismo moderado: os universais existem de forma exemplar na mente de Deus e participam da realidade criada. Essa visão preserva a inteligibilidade do mundo e a relação ordenada entre criatura e Criador.


2.4. Obras principais

As obras de Anselmo, embora não extensas em número, são densas e influentes. Elas podem ser agrupadas em três tipos: tratados teológicos e filosóficos, escritos espirituais e cartas pastorais.

2.4.1. Monologion

Primeiro grande tratado, escrito a pedido dos monges de Bec, apresenta um “exercício de meditação” sobre a existência e natureza de Deus sem recorrer diretamente à autoridade da Escritura. É um raciocínio baseado na razão natural, que conclui pela necessidade de um Ser supremo, fonte de todo bem e perfeição.

O Monologion já contém, de forma embrionária, temas que aparecerão com mais clareza no Proslogion.

2.4.2. Proslogion

Aqui se encontra o famoso argumento ontológico. Anselmo o concebeu como uma oração, não como um silogismo frio. Ele parte da fé para pedir a Deus luz sobre Sua própria essência, chegando à conclusão de que, se Deus é “Aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado”, Ele deve existir não apenas no intelecto, mas na realidade.

A forma orante do texto lembra que, para Anselmo, a razão só frutifica quando enraizada na contemplação.

2.4.3. Cur Deus Homo

Escrito durante o primeiro exílio, é um diálogo entre Anselmo e seu discípulo Boso sobre a razão da Encarnação. A resposta anselmiana, já exposta, tornou-se referência clássica para a soteriologia: a justiça divina exigia satisfação; o amor divino providenciou o Redentor.

Essa visão será aprofundada pela teologia medieval, mas sua formulação clara e lógica garantiu a influência duradoura da obra.

2.4.4. De Libertate Arbitrii e De Veritate

Nestes tratados, Anselmo aborda a liberdade e a verdade como realidades intrinsecamente ordenadas a Deus. A liberdade não é poder fazer o mal, mas capacidade de perseverar no bem. A verdade, por sua vez, é retidão percebida pela mente, seja em afirmações, seja na própria vontade.

2.4.5. Escritos espirituais e orações

Menos conhecidos do público geral, os textos devocionais de Anselmo revelam um coração profundamente apaixonado por Cristo e pela Virgem Maria. Suas orações são meditativas, contemplativas e impregnadas de Escritura.


2.5. Legado espiritual e intelectual

O legado espiritual e intelectual de Santo Anselmo é rico em dimensões, abrangendo desde a teologia até a filosofia, da vida monástica à ação pastoral:

2.5.1. No Magistério

Reconhecido como Doutor da Igreja, Anselmo é citado em documentos papais e aparece como referência no Catecismo. Sua explicação da Redenção e sua visão de fé e razão são usadas como exemplo de harmonia entre teologia e filosofia.

2.5.2. Na vida monástica e pastoral

Como abade e arcebispo, uniu disciplina, caridade e firmeza doutrinal. Sua defesa da liberdade da Igreja contra o poder secular antecipou princípios que seriam reafirmados no Concílio Vaticano II (Dignitatis Humanae, 13).

2.5.3. No pensamento contemporâneo

Teólogos como Karl Barth e Hans Urs von Balthasar retomaram seu lema fides quaerens intellectum como inspiração para um diálogo vivo entre fé e cultura. Bento XVI destacou que Anselmo mostra como “a busca racional da verdade não se opõe à fé, mas dela se alimenta”.


3. Conclusão

A vida e a obra de Santo Anselmo de Cantuária revelam um homem que não separou o amor de Deus da busca intelectual. Para ele, fé e razão são como duas asas que elevam o espírito à contemplação da verdade — imagem que João Paulo II retomaria na Fides et Ratio.

Sua trajetória mostra que a santidade não é fruto de isolamento do mundo, mas de engajamento fiel com os desafios do próprio tempo. Em meio a exílios, conflitos políticos e pressões seculares, Anselmo não abandonou seu compromisso com a Igreja e com a verdade do Evangelho. Essa fidelidade custou-lhe conforto e segurança, mas gerou frutos perenes para a vida da Igreja.

Do ponto de vista teológico, seu princípio fides quaerens intellectum continua atual: num mundo marcado por relativismo e ceticismo, é urgente mostrar que a fé cristã é profundamente racional e que a razão, para alcançar sua plenitude, precisa abrir-se à Revelação. Seu argumento ontológico, embora debatido, testemunha a confiança de que a inteligência humana é capaz de vislumbrar algo do mistério divino. Sua doutrina sobre a Redenção recorda que a Encarnação é obra do amor divino que respeita e cumpre a justiça.

No campo pastoral, Anselmo permanece exemplo de bispo que, mesmo ocupado com questões temporais, mantém a vida de oração e de estudo como prioridade. Ele ensina que o cuidado das almas exige clareza doutrinal, caridade firme e coragem frente às pressões externas.

No presente, a Igreja é chamada a imitar esse equilíbrio: dialogar com a cultura sem renunciar à identidade, usar a razão sem diluir a fé, unir contemplação e ação. Santo Anselmo nos convida a redescobrir que crer não é abdicar de pensar, e pensar não é prescindir de crer. É dessa integração que nasce um testemunho credível e atraente para o mundo.


ORAÇÃO DE ENCERRAMENTO

Senhor Deus, fonte de toda luz e sabedoria, que inspirastes Santo Anselmo a buscar-vos com mente e coração unidos, concedei-nos a graça de amar-vos de todo o coração e compreender melhor os vossos mistérios, não para vanglória nossa, mas para maior glória do vosso nome.

Fortalecei em nós a coragem de unir contemplação e ação, como fez vosso servo fiel. Que, diante das dificuldades e incompreensões, não percamos a serenidade da alma nem o ardor pela verdade.

Pela intercessão de Santo Anselmo, fazei-nos viver como peregrinos que buscam a pátria celeste, sustentados pela fé, iluminados pela razão e conduzidos pelo vosso amor eterno. Amém.

Referências Bibliográficas

  • Anselmo de Cantuária. Monologion; Proslogion. Tradução e introdução de vários autores. São Paulo: Paulus, 2004.

  • Anselmo de Cantuária. Cur Deus Homo. Traduzido por Frei Lucas Bueno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

  • Catecismo da Igreja Católica. Edição típica vaticana. São Paulo: Loyola, 2013.

  • Igreja Católica. Catecismo Romano, ou Catecismo do Concílio de Trento. São Paulo: Cultor de Livros, 2012.

  • Southern, Richard W. Saint Anselm: A Portrait in a Landscape. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

  • Santa Sé. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2005.

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