top of page

São Gregório de Narek: Poeta da Misericórdia e Doutor do Coração Penitente


ARTIGO - SÃO GREGÓRIO DE NAREKCaminho de Fé

 

INTRODUÇÃO

Na “idade de ouro” cultural da Armênia do século X, sob a dinastia Artsruni de Vaspurakan, floresceu o mosteiro de Narek às margens do lago Van, autêntica universidade monástica onde o jovem Gregório (c. 950-1005) recebeu formação patrística, bíblica e helênica. Filho de arcebispo, eleito abade ainda na juventude, Gregório de Narek transformou a experiência do claustro em manancial de poesia mística, produzindo o Livro das Lamentações—95 “Palavras” que entrelaçam confissão, teologia e súplica numa arquitetura de quase 10 000 versos. Venerado pelas famílias armênias como “o texto mais importante depois do Evangelho”, esse poema penitencial continua a ser lido nas vigílias quaresmais e a inspirar práticas de cura espiritual.

A relevância do santo armênio ultrapassou seu contexto local: a Igreja Católica reconheceu seu culto desde o século XVI e, em 12 de abril de 2015, o Papa Francisco proclamou-o 36º Doutor da Igreja, afirmando que ele “transmitiu a teologia através da beleza”. Tal título sublinha a ortodoxia doutrinal, a eminência de sua doutrina e o influxo perene de sua espiritualidade, abrindo novas vias de diálogo entre Oriente e Ocidente.

Este artigo propõe-se a traçar uma biografia crítica de São Gregório de Narek; analisar em profundidade suas principais obras — Livro das Lamentações, Comentário ao Cântico dos Cânticos e sharakans; evidenciar a síntese teológico-espiritual que articula miséria humana, misericórdia trinitária e deificação; destacar seu legado litúrgico, cultural e ecumênico; e indicar aplicações pastorais contemporâneas. Ao fazê-lo, busca-se mostrar por que o “Poeta do Infinito” continua a oferecer, à Igreja do século XXI, um modelo integrado de doutrina sólida, beleza litúrgica e experiência viva de Deus.

Imagem horizontal em estilo mosaico representando São Gregório de Narek em atitude de oração, com fundo dourado, manuscritos armênios e luz celeste.

2. Percurso histórico-teológico de um Poeta do Infinito

2.1 – Biografia completa

São Gregório de Narek (ou Gregório Narekatsi) nasceu entre 945 e 951, na aldeia de Andzevatsik, província de Vaspurakan, então um dos principados mais prósperos da Armênia Bagrátida. Filho do arcebispo Khosrov, cresceu num ambiente impregnado de vida litúrgica e cultura bíblica; a morte precoce da mãe marcou-lhe a infância e tornou-o particularmente sensível ao mistério do sofrimento humano.

Ainda menino, foi confiado ao tio Ananias de Narekavank, chamado “o Filósofo”, abade do mosteiro de São Basílio de Narek, situado junto ao lago Van. Nessa verdadeira universidade monástica – célebre pela excelência em exegese, patrística e filosofia helênica – Gregório recebeu formação integral que aliava estudo, oração coral e trabalho manual, segundo a melhor tradição beneditino-armênia.

A juventude de Gregório decorreu numa Armênia que vivia “idade de ouro” cultural antes das futuras invasões turco-seljúcidas: os mosteiros eram centros acadêmicos, copistas preservavam manuscritos e a arte sacra florescia ao redor das basílicas de tijolo vermelho de Vaspurakan. Ordenado sacerdote por volta de 970, distinguiu-se como pregador e mestre de noviços, redigindo os primeiros hinos (sharakans) que logo entrariam no ofício divino armênio.

Com a morte de Ananias, a comunidade elegeu Gregório como abade do Narekavank. Governou-o não com rigidez jurídica, mas com “autoridade de lágrimas”, exigindo de si mesmo penitência maior que a de seus monges. Ali compôs sua obra-prima, Livro das Lamentações, iniciada durante grave enfermidade, bem como comentários bíblicos e panegíricos marianos. Apesar de acusado por adversários de tendências místicas “excessivas”, foi formalmente declarado ortodoxo após inquérito sinodal – fato que explica sua rápida veneração popular tanto na Igreja Apostólica Armênia quanto, mais tarde, entre católicos de rito latino.

Até o fim da vida permaneceu no claustro, recusando honrarias episcopais e privilégios principescos oferecidos pela dinastia Artsruni. Faleceu em odor de santidade em 1005, sendo sepultado perto da igreja monástica, cujas pedras os fiéis logo extraíam para relíquias. A tradição conserva cronologia sintética:

  • c. 950 – nascimento em Andzevatsik

  • c. 960 – entrada no mosteiro de Narek

  • c. 970 – ordenação presbiteral

  • 977-1002 – redação do Livro das Lamentações

  • 985 – Comentário ao Cântico dos Cânticos

  • 1003-1005 – últimos hinos e testamento espiritual

  • 1005 – morte e início do culto local

A figura de Gregório revela a síntese típica dos Padres orientais: intelectual sólido, místico ardente e pastor de almas. Sua vida clausurada, mas profundamente eclesial, prepara a compreensão posterior de seu magistério poético, que o Papa Francisco celebrará ao proclamá-lo Doutor da Igreja em 2015 – sinal de que a santidade vivida à sombra das montanhas do Ararate ressoa hoje na universalidade católica.

 

2.2 – As principais obras de São Gregório de Narek: arquitetura literária e densidade teológica

2.2.1 O Livro das Lamentações (Matean Oghbergutyan)

Escrito entre 977 e 1002, provavelmente durante longa enfermidade do autor, o Livro das Lamentações reúne 95 “Palavras” num total aproximado de 10 000 versos. Cada unidade começa invariavelmente com o subtítulo «Desde as profundezas do coração, colóquio com Deus», sublinhando o caráter dialogal e orante da obra. A combinação de confissão pessoal, poesia mística, tratado dogmático e súplica litúrgica desafia rótulos literários: a obra foi comparada tanto às Confissões de Santo Agostinho quanto ao Saltério davídico, por partilhar o mesmo movimento interior de arrependimento, intercessão e louvor.

Tematicamente, o poema percorre três eixos:

  1. Diagnóstico da miséria humana – o eu lírico identifica-se como “pó vivo” e “cadáver que ainda fala”, imagens que reforçam a consciência do pecado original e a urgente necessidade de cura;

  2. Magnificat da misericórdia divina – Deus é descrito como “vida e força”, “benevolente e misericordioso”, único capaz de perdoar pecados e remover enfermidades;

  3. Ascensão mística – o movimento penitencial abre-se à comunhão trinitária, iluminada por discretas referências à “luz incriada”.

Na tradição armênia, o Narek é venerado como “o texto mais importante depois do Evangelho”; praticamente toda família conserva um exemplar, usado como “alimento espiritual” e, não raro, como livro de cura durante a Quaresma. Traduções modernas — destaca-se a versão inglesa de Thomas J. Samuelian — ampliaram sua recepção no Ocidente.

2.2.2 Comentário ao Cântico dos Cânticos

Redigido por volta de 985, a pedido do príncipe Gurgen de Andzevatsik, o comentário evidencia a sólida formação patrística de Gregório e sua pertença à escola exegética armênia. Inspirado sobretudo nos Padres Capadócios, o autor articula leitura literal, moral e mística, tratando o poema bíblico como “núpcias” entre Cristo-Esposo e a alma-Igreja. Essa abordagem permite-lhe desenvolver:

  • Cristologia nupcial – Cristo como Esposo ferido por amor, cuja união sacramental restaura a humanidade;

  • Eclesiologia simbólica – a amada representa simultaneamente Maria e a comunidade batismal;

  • Via unitiva – o progresso espiritual, da busca ansiosa ao repouso na câmara nupcial, descreve o itinerário de deificação.

Embora parte dos manuscritos permaneça dispersa no Matenadaran de Erevan, os fragmentos preservados testemunham fina técnica retórica e habilidade para integrar imagens do Oriente helenizado com ecos da poesia semítica.

2.2.3 Hinos (Sharakans) e Panegírico da Virgem

A produção hinológica de Gregório — ainda usada na liturgia armênia — introduziu recursos poéticos como o verso monorrimo, exercendo influência duradoura em autores que vão de Sayat-Nova a Parouir Sévak. Entre esses hinos, destacam-se composições marianas que antecipam formulações mais explicitadas séculos depois: o Panegírico da Virgem (c. 995) contém alusões tanto à Imaculada Conceição quanto à Assunção corporal, demonstrando perspicácia teológica e ousadia contemplativa.

Os sharakans organizam-se segundo o ano litúrgico e combinam catequese bíblica, devoção popular e elevada especulação. Três traços merecem nota:

  1. Cristocentrismo coral – cada estrofe conclui com invocação soteriológica, convidando a assembleia ao louvor;

  2. Mariologia integrada – Maria surge como trono da Sabedoria e “amplidão do Verbo”, unindo dogma e piedade;

  3. Sensibilidade pastoral – as imagens naturais (neve do Ararate, uva do monte Masis) tornam acessíveis verdades sublimes a analfabetos e eruditos.

Além dos hinos, pequenos ofícios penitenciais, bênçãos e orações dispersas em códices completam o corpus gregoriano. Juntos, esses textos confirmam o método que “transmite a teologia através da beleza” — argumento decisivo para que o Papa Francisco o declarasse Doutor da Igreja em 2015.

A análise cuidadosa de cada obra revela a coerência interna de uma teologia que funde erudição bíblico-patrística, experiência mística e serviço litúrgico. O Livro das Lamentações oferece a gramática do coração penitente; o Comentário ao Cântico descreve o matrimônio místico; e os sharakans fazem a ponte entre o claustro de Narek e a assembleia orante, assegurando a perenidade do legado de Gregório na vida da Igreja.

 

2.3 – Teologia, mística e espiritualidade

2.3.1 Visão trinitária de Deus

A primeira chave de leitura da obra de São Gregório de Narek é seu olhar explicitamente trinitário. Para ele, Deus é simultaneamente “vida e força”, “benevolente e misericordioso” e “o único capaz de perdoar pecados e afastar enfermidades” – atribuições que ele correlaciona, de maneira implícita, às missões do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Essa insistência no Deus-Comunhão ecoa o depósito da fé expresso pelos Padres Capadócios e retomado pelo Catecismo quando proclama a Trindade consubstancial e relacional. Em Narek, contemplar a Trindade não é mero exercício especulativo: trata-se de perceber que toda a história da salvação é movida pela “misericórdia que supera a justiça”, fundamento de sua teologia penitencial.

2.3.2 Antropologia: dignidade ferida e chamada à deificação

Gregório parte de uma visão realista do ser humano. Descreve-se como “pó vivo” e “cadáver que ainda fala”, imagens que sublinham a fragilidade da criatura após o pecado. Todavia, a miséria não anula a dignidade: o homem permanece imago Dei, vocacionado à comunhão de vida divina. A tensão entre grandeza e queda gera a dinâmica de sua espiritualidade: quanto mais o fiel reconhece a distância que o separa de Deus, tanto mais experimenta a “força que levanta o abatido” – expressão recorrente no Livro das Lamentações.

2.3.3 Teologia do pecado e da conversão

A consciência da própria ruína não desemboca em desespero, mas num itinerário pascal. Para Narek, o “principal objetivo da vida é a proximidade com Deus”, alcançada não pelo saber racional, mas pela contrição afetuosa. A pedagogia espiritual que propõe segue os três pilares armênios – jejum, oração e esmola – em plena consonância com o ensinamento tradicional da Igreja. As lágrimas de penitência, frequentemente mencionadas, atuam como “batismo cotidiano” que purifica o coração e o dispõe ao encontro com o Ressuscitado.

2.3.4 Cristologia e soteriologia

A cristologia de Gregório é fiel à tradição apostólica do Oriente Armênio: Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Redentor misericordioso, Juiz justo e, sobretudo, Esposo místico da alma. Essa tripla tipologia articula-se à dialética entre justiça e misericórdia: o Juiz torna-se o Amante que assume na cruz a condenação do pecador para conduzi-lo às núpcias eternas. Tal concepção harmoniza-se com a doutrina católica do sacrifício único de Cristo e da participação do fiel em Seu mistério pascal.

2.3.5 Espiritualidade penitencial

O caminho interior delineado por Narek é marcado por práticas concretas: exame de consciência diário, confissão sincera, esmola discreta e vigílias de oração. Nos hinos e orações breves, ele ensina a transformar todo gesto corporal num ato de súplica: “Dobro os joelhos para que a alma se levante”, escreve em uma das Palavras do Narek. Sua ênfase na correlação entre gestos externos e disposição do coração antecipa princípios que o Catecismo sintetiza ao tratar das múltiplas formas de penitência.

2.3.6 Mística da luz e experiência contemplativa

Ainda que menos sistemático que os hesicastas bizantinos, Gregório faz alusões discretas à “luz incriada” que atrai o orante ao interior da nuvem do mistério. A meta não é a apatheia estoica, mas o “Rosto de Quem concede a paz”. Assim, sua mística mantém-se profundamente cristológica: a claridade que invade a alma procede das chagas gloriosas de Cristo e conduz, pela graça, à visão beatífica intuita apenas em lampejos durante a oração.

2.3.7 Fontes patrísticas e bíblicas

O arcabouço doutrinal de Narek mostra confluência de três correntes:

  • Bíblica – sobretudo Salmos e epístolas paulinas, que moldam sua linguagem de lamento e esperança;

  • Patrística grega – Basílio, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa, cujas obras ofereciam ao mosteiro de Narek uma “biblioteca viva”;

  • Tradição monástica armênia – marcada pela disciplina ascética e pela leitura orante comunitária.

O eventual influxo do Pseudo-Dionísio permanece tema de debate – convergências existem, mas não há dependência textual direta, sinalizando originalidade relativa do místico armênio.

2.3.8 Síntese teológico-espiritual

A coerência interna das intuições de Gregório pode ser resumida em três movimentos:

  1. Descer às profundezas – reconhecimento existencial da própria miséria;

  2. Abraçar a misericórdia – confiança total no Amor trinitário manifestado em Cristo;

  3. Ascender na luz – união transformante que antecipa a deificação futura.

Esse tríplice dinamismo faz de Narek “doutor do coração penitente”, título que justifica sua proclamação como Doutor da Igreja e que oferece, à espiritualidade contemporânea, um modelo de integração entre doutrina sólida, poesia litúrgica e experiência viva de Deus.

 

2.4 – Legado litúrgico e cultural

2.4.1 O Narek na oração pública e doméstica

Nenhum texto – à exceção do Evangelho – ocupa lugar tão central na piedade armênia quanto o Livro das Lamentações. O manuscrito é lido de modo semicontínuo nas vigílias quaresmais e, fora do templo, acompanha as famílias como “alimento espiritual” e “livro de cura”, crença segundo a qual a simples proclamação dos seus versos obtém consolação e saúde do corpo e da alma . Essa dupla recepção, comunitária e doméstica, perpetua a intenção original de Gregório: fazer da poesia penitencial uma liturgia do coração celebrada sem cessar.

2.4.2 Festas e calendário litúrgico

A Igreja Apostólica Armênia celebra São Gregório de Narek na segunda quinta-feira do tempo da Assunção da Virgem (que se estende por quinze dias após o décimo quinto domingo depois de Pentecostes). Já a Igreja Católica o inscreveu no Martirológio Romano a 27 de fevereiro, data escolhida para evitar sobreposição com as festas armênias e sublinhar a universalidade do seu testemunho . A coexistência dessas datas exprime não divergência, mas complementaridade de tradições, e serve hoje como ponto de encontro ecumênico.

2.4.3 Hinos e música litúrgica

Os sharakans compostos por Gregório permanecem em uso no Ofício armênio; neles, a cada estrofe, o coro responde com invocação cristológica ou mariana, criando efeito de “respiração” entre assembleia e solista . O Catecismo da Igreja Católica atesta indiretamente esse legado ao situar os hinos de Narek ao lado do Acatisto bizantino e dos versos de santo Efrém, reconhecendo neles uma forma privilegiada da oração da Igreja.

2.4.4 Influência literária e linguística

Do ponto de vista cultural, Gregório é a principal força modeladora da poesia armênia. Seu verso monorrimo e o “empilhamento de metáforas” tornaram-se cânone para autores posteriores, de Sayat-Nova (séc. XVIII) a Parouir Sévak (séc. XX) . Ao mesmo tempo, a ousadia estilística do Narek expandiu o vocabulário do krapar (armênio clássico), provando que a língua litúrgica podia acolher neologismos sem perder dignidade – conquista comparada, por críticos contemporâneos, ao impacto de Dante sobre o italiano .

2.4.5 Sinal ecumênico e projeção global

A proclamação de Gregório como Doutor da Igreja em 2015, aceita com alegria pela Igreja Armênia, confirmou a capacidade unificadora do seu legado . Traduções modernas – notadamente a inglesa de Thomas J. Samuelian – impulsionaram o estudo comparativo e facilitaram a introdução de seus textos em repertórios corais ocidentais . Assim, um monge do lago Van continua a cantar nas catedrais do mundo, provando que a liturgia, quando plasmada por autêntica experiência mística, atravessa fronteiras de rito, tempo e idioma.

 

2.5 – Reconhecimento na Igreja Católica

2.5.1 Dos “direitos adquiridos” à veneração universal

Quando parte da Igreja Armênia entrou em comunhão com Roma no século XVI, a Santa Sé estendeu automaticamente o culto dos santos armênios ortodoxos aos fiéis católicos. Nesse contexto, Gregório de Narek foi acolhido “por direitos adquiridos”, sem exigir um processo canônico formal, pois já gozava de fama imemorial de santidade. O Martirológio Romano fixou sua memória em 27 de fevereiro, data que não colide com a festa armênia e sublinha a universalidade do seu testemunho.

2.5.2 Presença no Magistério contemporâneo

São João Paulo II citou o “Poeta do Infinito” em vários discursos e na encíclica Redemptoris Mater, valorizando-o como mestre de oração mariana; o Catecismo da Igreja Católica, no n.º 2678, coloca-o ao lado de Santo Efrém e do Acatisto bizantino como testemunha da invocação filial a Maria. Essas referências oficializaram, em âmbito latino, a autoridade doutrinal de seus escritos místicos.

2.5.3 Proclamação como 36.º Doutor da Igreja (2015)

Em 21 de fevereiro de 2015, o Papa Francisco aprovou o decreto da Congregação das Causas dos Santos; a proclamação solene ocorreu na basílica de São Pedro a 12 de abril de 2015. O sumo pontífice recordou os quatro critérios clássicos — santidade, ortodoxia, eminência doutrinal e influxo espiritual — e destacou que Gregório “transmitiu a teologia através da beleza”. O título honrou também o centenário do genocídio armênio, oferecendo sinal forte de solidariedade aos cristãos do Oriente e convite à reconciliação.

2.5.4 Impacto ecumênico e cultural pós-proclamação

A decisão pontifícia foi calorosamente acolhida pelo Catolicossado de Etchmiadzin, mostrando o potencial ecumênico da figura de Narekatsi. Em 2018, uma estátua do santo foi colocada nos Jardins Vaticanos, tornando-se ponto de peregrinação de armênios e fiéis de outros ritos. Sua doutrina passou a ser citada em documentos sobre diálogo intereclesial e em programas de formação teológica, reforçando a consciência de que a “teologia da misericórdia penitente” de Gregório responde às feridas do mundo contemporâneo.

Assim, o percurso do monge de Narek — do anonimato claustral à cátedra de Doutor da Igreja — espelha o dinamismo católico de reconhecer, integrar e irradiar tesouros espirituais surgidos nas diversas tradições que compõem a única fé da Igreja.

 

2.6 – Aplicação Pastoral Contemporânea

2.6.1 Catequese penitencial permanente

O Livro das Lamentações oferece uma “gramática do coração arrependido” facilmente adaptável a encontros de catequese, círculos bíblicos ou retiros. Escolher duas ou três “Palavras” (p. ex. I, XII, LIII) e alternar leitura em voz alta com momentos de silêncio ajuda os fiéis a reconhecer a própria fragilidade sem cair no desespero, pois cada estrofe termina confiando na “misericórdia que supera a justiça” . O método segue o Catecismo, que recomenda a tríade jejum–oração–esmola como caminho ordinário de conversão-alegria .

2.6.2 Liturgia e oração familiar

Durante a Quaresma, muitas paróquias armênias integram passagens do Narek às vigílias; transplanta-lo para o rito latino é simples: inserir um dos poemas como salmo responsorial alternativo ou como “oração de pós-comunhão” em missas feriais fortalece o clima de contrição e esperança . Em casa, famílias podem reservar cinco minutos à noite para proclamar um trecho, acendendo uma vela que simbolize a luz pascal que já desponta no caminho penitencial .

2.6.3 Pastoral da saúde e unção dos enfermos

A tradição armênia atribui propriedades curativas à simples escuta do Narek; mesmo sem superstição, a Igreja valoriza o poder consolador da Palavra (cf. CIC 1499-1503). Após a unção dos enfermos, o presbítero ou ministro extraordinário pode rezar a “Palavra 70”, na qual Gregório suplica: “Sê Tu, Médico e remédio, repouso e vigor” . Esse gesto vincula o sacramento à espiritualidade oriental, ampliando a experiência do doente de que está unido à Paixão e à cura pascal de Cristo.

2.6.4 Ministério da música e arte

Os sharakans permanecem vivos na liturgia armênia; corais católicos podem incorporar versões traduzidas (existem partituras em domínio público) como canto de entrada ou meditação pós-comunhão, oferecendo sonoridade diferente da tradição gregoriana e reforçando a universalidade da Igreja . Oficinas paroquiais de poesia podem estimular jovens a compor “lamentos” inspirados no verso monorrimo gregoriano, unindo arte e fé.

2.7.5 Ecumenismo e diálogo cultural

A recepção convergente de Gregório por católicos e pela Igreja Apostólica Armênia torna suas obras instrumento privilegiado para orações ecumênicas. Uma “Hora de Misericórdia de Narek”, com leitura alternada de trechos do Livro das Lamentações e do Evangelho, pode ser celebrada em templos de ambas as tradições, sinalizando reconciliação e partilha de dons espirituais .

2.6.6 Recursos digitais e formação contínua

Projetos online de lectio divina já disponibilizam áudios do Narek em armênio e inglês; dioceses lusófonas podem criar podcasts semanais com leitura e breve comentário pastoral, favorecendo a “escuta em trânsito” típica da cultura digital . Em programas de formação permanente do clero, sugerir estudo comparativo entre Gregório de Narek e Santa Teresa de Ávila ajuda futuros confessores a articular mística e direção espiritual num idioma acessível à geração atual.

Em síntese, a herança gregoriana oferece ferramentas concretas para revitalizar catequese, liturgia, cuidado dos enfermos, expressão artística e diálogo ecumênico, mostrando que a beleza penitente do monge de Narek continua a gerar frutos pastorais na Igreja do século XXI.

 

CONCLUSÃO

O itinerário de São Gregório de Narek — monge do lago Van, poeta penitente e 36.º Doutor da Igreja — demonstra como a beleza pode veicular doutrina e fomentar conversão. Seu Livro das Lamentações, composto de 95 “Palavras” que sempre se iniciam “Desde as profundezas do coração”, propõe um diálogo contínuo entre a criatura pecadora e a misericórdia trinitária, alcançando quase 10 000 versos de alta densidade bíblico-patrística . Na tradição armênia, tal obra foi elevada ao estatuto de “texto mais importante depois do Evangelho”, presente em lares e celebrações quaresmais, sinal de que a confissão sincera pode tornar-se verdadeiro ato litúrgico e caminho de cura espiritual .

A teologia de Gregório articula três polos: visão trinitária centrada na misericórdia, antropologia que reconhece simultaneamente dignidade e ferida, e cristologia em que Cristo aparece como Redentor, Juiz e Esposo da alma. Essa síntese evita tanto o rigorismo desesperançado quanto o sentimentalismo superficial, oferecendo uma espiritualidade penitente permeada de esperança .

Seu legado ultrapassa fronteiras confessionais. Desde o século XVI, a Igreja Católica acolheu o culto de Gregório “por direitos adquiridos”, reconhecimento ratificado por referências magisteriais de São João Paulo II e pelo Catecismo (n.º 2678) . A proclamação como Doutor da Igreja, feita pelo Papa Francisco em 12 de abril de 2015, consagrou oficialmente a eminência doutrinal de uma voz que “transmitiu a teologia através da beleza” .

Por fim, as múltiplas aplicações pastorais — da catequese penitencial à oração familiar, da unção dos enfermos ao ministério da música — mostram que o monge de Narek continua a falar à Igreja inteira. Ele convida cada fiel a descer às próprias profundezas, abraçar a misericórdia e, iluminado pela cruz, ascender na luz pascal.

 

ORAÇÃO DE ENCERRAMENTO

Trindade santa, fonte de luz e misericórdia, nós Te bendizemos pela vida de São Gregório de Narek, poesia viva que brota do silêncio do claustro. Que seu canto, erguido “das profundezas do coração”, se una hoje ao nosso louvor e faça ressoar a Tua bondade sem fim.

Concede-nos, Pai de ternura, o dom das lágrimas penitentes que lavam a alma, a fé robusta que o sustentou na provação e a esperança firme que transforma dor em confiança. Pela cruz de Teu Filho, sara as nossas feridas e faz-nos saborear o abraço do perdão.

Espírito Santo, envia-nos como peregrinos de beleza entre Oriente e Ocidente; que palavras, obras e hinos sirvam à reconciliação dos povos e à edificação da Igreja una. Guiados pelo Poeta do Infinito, caminhemos rumo à Páscoa, onde contemplaremos para sempre o rosto radioso do Amor. Amém.

Comentários


Receba Inspirações Diárias em Seu E-mail. Assine a Newsletter do Caminho de Fé

Permita que a Palavra de Deus ilumine sua vida! Inscreva-se e receba e-mails sempre que publicarmos novos conteúdos para enriquecer sua caminhada espiritual.

Não perca a oportunidade de transformar cada dia com fé, esperança e inspiração. Inscreva-se agora!

Obrigado(a)!

bottom of page